Relatório: 98% das pessoas presas em flagrante em 2020 em Salvador eram pretas ou pardas

Levantamento, realizado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia, aponta ainda que a subnotificação de torturas durante prisões em flagrante chegou a 84%

Publicado em 10 de dezembro de 2021 às 16:02

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Foto: Divulgação

Nesta sexta (10), dia em que é celebrado o Dia da Declaração Universal de Direitos Humanos, a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA) lançou um relatório que mostra o perfil das pessoas presas em Salvador em 2020 e os impactos que a pandemia causou na realização das audiências de custódia e nas informações sobre casos de tortura nessas prisões. O documento mostra que a subnotificação de torturas durante prisões em flagrante atingiu a marca de 84% na pandemia, o dobro do dado obtido em 2019. Além disso, das 4.436 pessoas que foram presas em flagrante no ano passado, 3.936 se autodeclararam pretas ou pardas, o que corresponde a 98% do total. Já o restante, 79 pessoas, se autodeclararam brancos.

Desde 2019, a Defensoria produz e publica anualmente relatório a respeito das audiências de custódia. Entretanto, em virtude da pandemia da Covid-19, a partir de março de 2020 - até o fechamento do relatório em outubro de 2021 - não foram realizadas audiências de custódia presenciais na comarca de Salvador, de modo que os dados foram coletados a partir dos documentos que constam dos Autos de Prisão em Flagrante lavrados neste período. 

“Em 2019, nós tivemos 1.292 ocorrências de lesão no momento da prisão, sendo que 1.530 dos presos em flagrante relataram de que não houve lesão e 2.331 é subnotificação, ou seja 45,23% não houve informação de lesão ou não. Já em 2020, esse dado aumentou para 84,73% de subnotificação”, declarou o defensor público Rafael Couto. O relatório mostra que foi justamente a partir do mês de março que o índice de subnotificação aumentou, chegando a atingir 100% dos flagrantes nos meses de abril, junho, julho, agosto e setembro de 2020.    O relatório "Autos de Prisão em Flagrante na Comarca de Salvador (ano 2020)” mostra que de 4.436 pessoas presas em flagrante no ano passado, 318 relataram ter sofrido lesão no momento da prisão, 359 afirmou não ter sofrido lesão, sendo que a informação não foi coletada em 3.759 dos casos. Em relação a autodeclaração de cor, o documento mostrou que 300 (7,62%) dos pretos e pardos relataram ter sido agredidos, enquanto que 343 relataram não ter sido agredidos. Essa informação, todavia, não esteve presente em 3.293 dos casos envolvendo pretos e pardos. Já quanto aos brancos, cinco (6,33%) relataram ter sido agredidos, ao passo que quatro relataram não ter sido agredidos e em 70 dos casos essa informação não esteve disponível.

"O nosso relatório apenas reflete que nada mudou no sistema da escravidão e da democracia, é o racismo estrutural e o genocídio do corpo negro. Não é apenas a morte e execução, mas o isolamento, neutralização e encarceramento do jovem negro também é uma forma de genocídio e de necropolítica estatal [conceito filosófico que faz referência ao uso do poder social e político para decretar como algumas pessoas podem viver e como outras devem morrer]. O documento demonstra o discurso punitivo estatal, que o inimigo na nossa sociedade continua sendo o inimigo que antes era escravizado e que hoje é encarcerado”, relatou Couto. 

De acordo com a assessora de pesquisas estratégicas da DPE/BA, Fernanda Morais, os dados referentes às audiências de custódia começaram a ser coletados pela Defensoria Pública da Bahia no ano de 2015, que foi justamente quando a audiência de custódia começou a ser realizada, após a publicação da Resolução nº 213, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Mesmo com tudo regulamentado, ainda encontramos resistência por parte de alguns juízes, promotores e advogados que queriam que essa audiência não fosse realizada, mas a gente conseguiu fazer com que esse expediente fosse de fato absorvido pela Justiça e se tornasse uma rotina”, revelou. 

Segundo Fernanda Morais, a audiência de custódia é um ato processual que já estava previsto há algum tempo em alguns tratados de direitos humanos dos quais o Brasil faz parte.Ela consiste no direito que o preso em flagrante tem de ser levado a presença de um juíz assim que for preso para que ele possa verificar se esse suspeito sofreu algum tipo de tortura ou maus-tratos no momento da prisão em flagrante. "Além de verificar se a prisão em flagrante deve ser convertida em prisão preventiva, se o preso deve ser colocado em liberdade ou se aquele flagrante foi regular, de modo que se não for, a prisão deve ser relaxada, sendo considerada ilegal”, completou. 

De acordo com o relatório, entre setembro de 2015 e dezembro de 2020, foram registrados 27.382 Autos de Prisão em Flagrante. "A pandemia dificultou a análise, mas os dados são muito relevantes”, avaliou a assessora de pesquisas estratégicas.  

O coordenador da Especializada Criminal e de Execução Penal da DPE/BA, Pedro Casali, afirmou que o relatório é de extrema importância, sendo um instrumento fundamental de políticas públicas. “Nós ainda continuamos com homens, jovens, negros, pobres, pessoas com o ensino fundamental incompleto e os crimes relacionados a patrimônio e drogas como grande cliente do sistema prisional relacionado a audiência de custódia”, apontou. 

O coordenador também ressaltou a importância de desfazer o mito de que pessoas presas em flagrante que são colocadas em liberdade acabam sendo presas novamente. No relatório, a ocorrência de uma segunda prisão em flagrante de pessoa que tenha sido colocada em liberdade - mediante a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança ou demais medidas cautelares diversas da prisão - chegou a uma taxa de retorno de 6,1%. Sendo assim, das 4.436 pessoas que foram presas em flagrante na capital no ano de 2020, apenas 270 foram novamente presas nesta condição. 

Além disso, a pesquisa também constatou que 95% das pessoas flagranteadas eram do sexo masculino, ao passo em que apenas 5% eram do sexo feminino. Quanto à idade dos flagranteados na data da prisão, verificou-se o seguinte: 3.052 dos presos (68,8%) tinham entre 18 e 29 anos; 975 (21,9%) tinham entre 30 e 41 anos; 299 (6,7%) tinham entre 42 e 53 anos; 55 (1,2%) tinham entre 54 e 59 anos; 29 (0,6%) tinham 60 anos ou mais e 26 (0,5%) não informaram suas idades. Dessa forma, o relatório chega a conclusão que a maior parte dos presos são jovens. 

No que diz respeito à escolaridade dos flagranteados à época da prisão, 1.522 (34,3%) dos presos tinham o ensino fundamental incompleto; 476 (10,7%) tinham o ensino fundamental completo; 344 (7,7%) tinham o ensino médio incompleto; 365 (8,2%) tinham o ensino médio completo; 51 (1,1%) tinham o ensino superior incompleto; 31 (0,6%) tinham o ensino superior completo e 1 (0,02%) tinha ou estava cursando uma pós-graduação. Constatou-se, ainda, que 81 (1,8%) dos flagranteados não tinham sido alfabetizados.

Sobre a renda mensal que essas pessoas tinham na data da prisão, o relatório apontou que 622 (14%) não possuíam renda alguma; 447 (10,1%) tinham renda de até um salário mínimo; 97 (2,2%) tinham renda entre um e dois salários mínimos; 1 (0,01%) tinha renda entre dois e cinco salários mínimos; e 7 (0,2%) tinham renda acima de cinco salários mínimos. No entanto, não houve informação nos dados acerca da renda de 3.262 (73,5%) flagranteados.

Para ter acesso ao relatório completo, de 2019 e 2020, é necessário acessar o site da Defensoria Pública do Estado.

*Sob orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro