Romance sobre Maria Quitéria reconstitui personalidade, trajetória e paixões da heroína

‘Maria Quitéria - A soldada que conquistou o Império’, livro ficcional da gaúcha Rosa Symanski, tem discreta contribuição da coluna Baianidades

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  • Da Redação

Publicado em 22 de março de 2021 às 06:30

- Atualizado há um ano

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Retrato de Maria Quitéria de Jesus (Crédito: Augustus Earl) Não faz muito tempo, ouvi alguém - acho que o jornalista Eduardo Bueno num vídeo - comentar que o Brasil não produz mitologia sobre si mesmo. E de fato, considerando nosso tamanho, não produzimos nem em uma escala razoável, que eu definiria generosamente como 3% do que faz os EUA há décadas - substituindo bombas atômicas por spielbergs e madonnas, com iguais potenciais destrutivos e de dominação. [Brinks!]

Também não faz tanto tempo que eu refletia sobre não haver uma adaptação cinematográfica para ‘Viva o Povo Brasileiro’, por exemplo, ou uma cinebiografia digna de personagens gigantescas da História da Bahia (e do Brasil) como Luiz Gama, Manuel Querino, Maria Quitéria... Era precisamente sobre essas três que eu reclamava pela indesculpável lacuna.

Sorte que um pouco dessa minha frustração começou a ficar para trás, ao menos no campo literário, com o lançamento na sexta-feira (19) do livro ‘Maria Quitéria - A soldada que conquistou o Império’, romance histórico da jornalista e escritora Rosa Symanski. Capa do livro (Crédito: Divulgação) Gaúcha como Bueno - “a verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul”? -, Rosa criou, após pesquisa de anos - que passou até por um artigo desta coluna Baianidades -, uma saga que reconstrói a vida cotidiana (e a carreira militar) da heroína da Independência do Brasil na Bahia. De quebra, e não menos importante, traz reflexões sobre as mulheres que ainda perduram, passados 200 anos.“Maria Quitéria foi a brasileira mais importante do século XIX. O que ela fez, em termos de vanguarda, pioneirismo, não teve antecedentes. (...) Acho que pode ser até um pouco bombástico que as pessoas não saibam disso”, inicia Rosa, que colocaria na mesma prateleira de importância do período só a Imperatriz Leopoldina (austríaca, diga-se).A esposa de Dom Pedro é, inclusive, uma das personagens do livro, assim como o próprio imperador do Brasil. O encontro entre Quitéria, Leopoldina e Pedro I (perdoem o ligeiro spoiler a seguir) é um dos pontos altos da obra ficcional com fundo histórico bastante consolidado - são nove páginas de referências, só pra você ter uma ideia. A jornalista e escritora Rosa Symanski (Foto: Divulgação) Motivação para a luta O texto desta coluna que, de alguma maneira, ajuda a envelopar a obra, foi publicado em maio de 2019. Em ‘Um furo historiográfico sobre Maria Quitéria ou um boato machista para queimá-la?’, eu desenterrei um boato que ainda hoje circula no município de Tanquinho, dando conta do suposto “motivo real” do alistamento da heroína para combater no Batalhão dos Periquitos.

Quem me alertou sobre esse rumor renitente até os presentes dias foi uma descendente da linha direta de Quitéria, Gabriella Esmeralda, que descobriu o tal boato numa tentativa de resgate histórico de sua parenta na pequena cidade próxima a Feira de Santana.  Outro retrato de Quitéria. Ao lado, sua descendente e 'sósia', a professora Gabriella Esmeralda (Créditos: Domenico Failutti e Acervo pessoal) Muita gente ainda sustenta, por lá (inclusive outros parentes da linha direta em Tanquinho), a versão machista de que a heroína foi à guerra por amor a um soldado, e não à pátria. Rosa desmonta essa versão a cada capítulo.

“Como você mesmo presenciou, as pessoas têm ideias pré-concebidas e que foram crescendo ao longo dos anos, dos tempos, que atribuem ao fato dela ter se alistado, fugido de casa, por estar apaixonada por um homem que também estava lá no exército. Não foi esse o motivo: a gente tem provas que ela foi movida por um outro propósito, muito maior do que esse”, explica a autora, que acabou convidando a professora Gabriella Esmeralda, licenciada em Filosofia, para refletir sobre a antepassada no prefácio do livro.

“O que a gente tem hoje em dia sobre Quitéria é pouco em relação ao que ela representou para a época. Porque ela ficou famosa, foi para o Rio de Janeiro receber aquela condecoração do Dom Pedro [a Imperial Ordem do Cruzeiro]... Ela andava nas ruas e era reconhecida, saía nos jornais”, relembra a escritora, trazendo alguns dos elementos relatados na obra - ficcional, pero no mucho.

Lucas da Feira Entre os destaques do livro para mim, além das relações interpessoais que envolvem a família, a fazenda onde ela cresceu, as amizades e paqueras, está o fato de Quitéria e Lucas da Feira, outro personagem ‘feirense’ revolucionário, serem da mesma época e, inclusive, terem vivido em áreas próximas!

A história do líder negro, sobre o qual meu parceiro André Uzêda já falou aqui na coluna (clique aqui para ler), também conquistou o coração de Rosa Symanski. 

“O Lucas da Feira foi o segundo maior presente que eu recebi, à medida que eu avançava na pesquisa. Ele tinha uma inteligência extremamente aguda, era um visionário, e ainda tinha aquela atuação junto aos quilombos; ele não se sujeitava à escravidão, era um rebelde por natureza”, conta sobre o processo de construção ficcional da relação, que pode ter sido real em alguma medida. O tempo delimita a distância para criar verossimilhança.

“Não existe uma grande intimidade assim entre os dois porque a gente sabe muito bem que os relacionamentos entre mulheres e homens naquela época não podiam ser muito próximos, não fosse parente ou marido. Mas eles têm uma relação de camaradagem, e ela compreende ele, e ele compreende ela, e isso, sabe, foi muito gratificante pra mim. Porque ver dois personagens, assim, rebeldes e com histórias paralelas, da densidade desses dois, foi uma riqueza enorme”, comemora a autora.

Lançado pela Poligrafia Editora, ‘Maria Quitéria – a soldada que conquistou o Império’ tem 258 páginas e custa, na versão impressa, R$ 44,99. Para quem quiser ler em dispositivos digitais, o e-book sai por R$ 19,61. Clique aqui para comprar.

Confira uma pequena passagem do livro:

Vasculhava a própria mente em busca de respostas sobre o que, em qual momento havia sido determinada essa obediência e temor desmedido em relação ao sexo masculino.

Pensou em Maria Rosa como uma vítima também, pois esta jamais poderia agir como o pai, fazendo sexo com os escravos da fazenda, e nas circunstâncias que levaram a tal acontecimento com Chica. Então, refletiu sobre o destino nefasto dos escravos, das mulheres sem livre arbítrio, e do bebê, seu meio-irmão, que agora aproveitava o momento do colo da mãe presente para se entregar sem tréguas à sucção desvairada, indiferente à existência que o esperava. Ao integrar todos os elos da intrincada corrente, Maria Quitéria sentiu-se completamente vulnerável e incapaz de algum gesto para fazer alguma diferença diante de tanto desespero.

Naquele momento e lugar, palavras de consolo soariam vazias e sem sentido.