Salvador, redescoberta, renascimento

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  • Gabriel Galo

Publicado em 31 de março de 2021 às 16:00

- Atualizado há um ano

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Era dezembro de 1996 quando nós, os filhos, nos juntamos aos pais, que tinham meses antes deixado Salvador rumo ao recomeçar em outro estado. Estive exatos 11 anos afastado. Neste ínterim, a distância e a necessidade se encarregaram de romper as raízes com a Bahia. Repetia, inocente talvez, puro certamente não, e besta indiscutivelmente, a linha que li no espalhado da internet: “sou baiano, mas não pratico.”

No retorno, sacramentado quando meu pai buscou na volta pra casa mais um recomeço de uma vida que nunca se formava, as imagens de quem observa do avião o romper da cidade pelo Farol da Barra para depois, pelo lado esquerdo de quem voa, avistar o complexo do Barradão, inundaram meus olhos de um sentimento de querência que escondido estava, porém pulsava um batimento distante, inaudível pelo barulho do afastamento. No silêncio da contemplação, dali do alto eu a via, a batida era de tambor. Redescoberta.

Estava, enfim, de volta. Painho, em nossas andanças retomadas pela cidade, repetia pontos da memória. Sabia ele, tantos anos fora quanto eu, o quanto valia esta conexão. Lutava para não me deixar esquecer, nem a ele. Emendava sempre o assunto com um “já te contei da vez que...” Sim, já tinha contado. Umas tantas e outra vezes.

E foi no ferry boat de regresso da Ilha de Itaparica que revivi o arrebatamento que um dia fez Darwin afirmar, ainda cheirando a leite, que “ninguém poderia imaginar algo tão bonito como a antiga cidade da Bahia.”

Nesta cena há um eco de familiaridade universal, posto em palavras exuberantes por Raduan Nassar em Lavoura Arcaica:

“Não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: estamos sempre indo pra casa.”

Se me conduzi para regiões mais afastadas, se Darwin se inaugurava, neste quesito estávamos juntos, mesmo que séculos apartados. Atravessar a Baía de Todos os Santos é uma experiência transcendental de renascimento. Adentra-se, quem vem de lá, a cidade que é uma e é todas, é d’Oxum, onde o contraditório é regra.

Brinca a retórica do baratino que Salvador não é nem uma coisa, nem outra, tanto pelo contrário. É, portanto, irresumível, tanto que é Bahias e mais baías, estado, time, de Todos os Santos, de Itapajipe, de Aratu.

E apesar das mazelas de uma urbe opressora e desigual, vestem-se tantos de sorrisos no rosto a exaltarem um ideal –se ideal, logo, fabricado, pois estereótipo é exagero de traço– de uma tal baianidade que é cantada em verso e prosa. Como pode, a gente persiste, batalha e sobrevive. E na sobrevivência, Salvador renasce. Ou, parafraseando o ditado, reestreia.

Para quem nela sabe a dor e delícia de ser o que é, o cotidiano para além do alto e do ferry eventuais, cada redescoberta é renascimento. Tromba-se no caminho com os arrebatamentos constantes de uma cidade acumuladora de símbolos. Na vista de elementos da querência mais bela do que se pode imaginar – tríade completa de céu, chão e mar – renovam-se os votos de fidelidade afetiva à cidade em toda sua complexidade e incongruência.

Cumpre-se, assim, o destino da mãe-terra, mesmo alhures, de ser soteropolitano e baiano praticante, o que quer que isso seja – e essa narrativa é essencialmente individual. Descubra a sua.

Vivi o não ter – e o consequente não ser – para aprender esta lição. Voltei, redescobri, renasci. De Salvador e de minha gente não me afasto mais.

Gabriel Galo é escritorOpiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores