São João começou como brincadeira de criança em Santo Antônio de Jesus; confira

Festas particulares e tradições juninas se misturam na cidade do recôncavo

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  • Gil Santos

Publicado em 24 de junho de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação/Prefeitura de Santo Antônio de Jesus

Uma brincadeira de criança mudou para sempre a história do São João de uma das cidades mais tradicionais na realização da  festa na Bahia. Era final da década de 1960 e os pimentinhas moravam na Rua Landulfo Alves, nº 168. Essa era a casa do músico Atanagildo Tourinho, um membro da Filarmônica de Santo Antônio de Jesus, no recôncavo baiano, e figura conhecida na cidade. Um dia, um dos filhos dele resolveu aprender a tocar sanfona e aí tudo mudou.  

Até os anos 1960, as festas juninas de Santo Antônio de Jesus eram muito similares às de outras cidades pequenas do interior. As famílias construíam fogueira, enfeitavam a casa com bandeirolas e montavam uma mesa com as iguarias típicas do período, como milho, amendoim, bolo de aipim, canjica e tudo mais que dá água na boca. A interação era somente entre os vizinhos mais chegados, que visitavam uns as casas dos outros.  

Gildo Tourinho tinha 10 filhos, oito meninos e duas meninas, e todos os anos os mais velhos ajudavam o pai a recolher lenha no quintal para construir as fogueiras. Eram duas, uma para o dia 23 e outra para o dia 24 de junho. E os mais novos ajudavam a mãe a fazer as bandeirolas, balões, fogueirinhas e outros objetos de decoração. Entre 1966 e 1967, Rai Tourinho, que naquela altura ainda era conhecido como Raimundo, resolveu experimentar a sanfona do pai.  

“Eu tinha 13 ou 14 anos, e consegui desenvolver rápido alguns versos, como ‘a fogueira está queimando, em homenagem a São João...’. Meus irmãos e uns amigos entraram na brincadeira. Um arrumou uma zabumba, outro trouxe um triângulo e a gente saiu pela rua cantando e tocando. As pessoas adoraram porque naquele tempo não tinha banda, então, a gente animava a festa, e convidavam a gente para entrar e comer alguma coisa”, contou.  

Nos anos seguintes, a brincadeira continuou e mais gente resolveu participar. Até seu Gildo entrou na farra. Ele carregava um barril com licor para oferecer ao povo que acompanhava a procissão, e a festa foi avançando para outras ruas do bairro. Rai aprendeu outras músicas e contou que acontecia situações engraçadas. 

“A gente cantava muito uma música que dizia assim ‘Oh dona da casa por Nossa Senhora/Dai-me o que beber senão eu vou me embora’. E os donos da casa corriam para oferecer licor porque achavam que a gente estava cobrando. Eram outros tempos”, brincou.  

Na medida em que os Tourinhos foram ficando mais velhos, as festas também terminavam cada vez mais tarde. Geralmente, o grupo saia da Rua Landulfo Alves por volta das 19h e muitas vezes só retornava de madrugada. Yuri Pithon morava na Praça Padre Mateus, também no Centro da cidade, e lembra bem dessa época. “Era bom demais. A gente ia de casa em casa, catando e tocando. E as pessoas ofereciam para a gente comida e bebida”.  

Ele gostou tanto que resolveu seguir a carreira de músico e se tornou sanfoneiro. “São João é vida, é a marca do Nordeste e o que temos para oferecer de melhor para o Brasil e para o mundo”, disse o artista, que também lamentou o fato da pandemia de covid-19 ter estragado a festa no ano passado e este ano.   Filhos de Seu Gildo começaram tradição de brindeira (Foto: Acervo Pessoal) Da quadrilha ao palco A procissão que surgiu nas ruas no final da década de 1960, e que se intensificou nos anos 1970, não conseguiu acabar com uma tradição: as quadrilhas juninas. Organizadas pelas escolas, elas aconteciam nos pátios dos colégios e envolviam toda a comunidade. Os preparativos começavam um mês antes, com ensaios no intervalo das aulas.  

As mães faziam os vestidos de chita das meninas e colavam remendos nas bermudas dos meninos. Pintavam costelas e bigodes neles, e faziam Maria Chiquinha nelas. A divisão dos pares era feita por altura. E, às vezes, acontecia atritos, como conta Rai Tourinho.  

“Eu era apaixonadinho por uma menina chamada Fátima. A gente devia ter uns 12 anos, e ela era um pouco mais alta que eu. A professora colocou a gente como par, e eu fiquei muito feliz, mas depois ela mandou trocar para ajustar a altura. Eu chorei e ela desistiu”, conta, saudoso.  

Com o tempo, a violência e a insegurança mudaram as regras da festa em Santo Antônio de Jesus. Depois de episódios de furtos, as famílias passaram a ter medo de receber desconhecidos durante o São João e no final dos anos 1980 essa tradição já estava quase perdida. Na década seguinte, vários municípios começaram a montar palcos, contratar bandas e organizar uma festa nos moldes das que existem atualmente.  

Santo Antônio de Jesus seguiu a onda e na década de 1990 o São João saiu das casas e foi parar no meio da praça. Em 2019, última edição antes da pandemia, a cidade, que tem 100 mil habitantes nativos e mais 20 mil flutuantes – pessoas que moram em municípios vizinhos, mas trabalham e estudam em SAJ – recebeu 100 mil visitantes. Entre as atrações, nomes conhecidos como Simone e Simaria e os cantores Wesley Safadão, Solange Almeida e Danniel Vieira.  

Para Ana Celeste Lessa, 53 anos, o São João de SAJ significa incremento na renda. Ela faz bolos e salgados, e contou que não consegue descansar no período junino devido a quantidade de pedidos, mas contou que sente falta dos velhos tempos.  

“A gente perguntava para as pessoas ‘São João passou por aí?’, e quando a resposta era que ‘sim’ a gente podia entrar para comer e beber. Minha mãe tinha o hábito de fazer florzinhas de papel que a gente chama de ‘sorte’. Dentro delas tinha um dizer, como ‘você vai encontrar seu futuro marido hoje’, e o pessoal adorava. Agora é só lembrança”. Rai Tourinho aprendeu sanfona para animar as festas (Foto: Acervo Pessoal) Festas particulares Santo Antonio sempre teve festas particulares de São João, mas os modelos eram diferentes dos atuais. O médico João Apostolo, 63, conta que na década de 1980 organizava eventos com os amigos. “Era uma festa entre amigos e a casa era a base da festa. Não era a praça. Tudo feito em cima da hora. A improvisação comandava”, lembra.  

O cineasta Tau Tourinho, que há 35 anos estuda a história da cidade e também é filho de Seu Gildo, diz que clubes e moradores mais abastados sempre fizeram arraiá particular. Ele lançou um curta sobre a fundação de SAJ. Está no YouTube com o nome ‘Marco Zero Santo Antônio de Jesus’.

Veja o curta:

“Os clubes sociais faziam algumas festas particulares, mas os festivais de quadrilha que eles organizavam eram gratuitos. No final da década de 1980, começaram a surgir os hotéis-fazenda que faziam eventos como prévia e ressaca do São João. Essas festas existem até hoje e chegam a receber 700 pessoas”.  

A mais famosa é o Forro do Lago, que arrasta uma multidão e já levou nomes como Gusttavo Lima, Wesley Safadão, Xand Avião, Dorginal Dantas e Saia Rodada.  

“Existia uma micareta que acontecia em maio. Nos anos 1990, a prefeitura e a associação comercial acabaram com a micareta e instituíram o São João imitando Amargosa, que também havia passado pelo processo de sair casa em casa e, depois, se profissionalizado. Santo Antônio pega carona e passa a fazer também esse São João que conhecemos, que é mais grandioso”, contou Tau.  

Foram necessários 30 anos para a festa se reinventar e já faz 30 anos desde a última mudança. Os moradores estão curiosos para saber se a pandemia vai provocar efeitos sobre o evento, mas, enquanto 2022 não chega, o jeito é aproveitar do jeito que dá. Yuri Pithon também virou músico por causa das festas em SAJ (Foto: Acervo Pessoal) São João digital do CORREIO 

Nesta quinta-feira (24) tem arraiá no CORREIO. Para animar os baianos que estão sentindo falta dos festejos juninos, cancelados pelo segundo ano consecutivo por conta da pandemia, o jornal traz o São João no Correio Ao Vivo. Funciona assim: primeiro, você arrasta o sofá e a mesa, e deixa a sala livre. Em seguida, arruma um parceiro de dança e sintoniza nas redes sociais do jornal (@correio24horas). Depois, é só aproveitar as atrações.  

A festa começa cedo, as transmissões acontecerão a partir das 18h30, pelo Youtube, Instagram e Facebook do jornal. Nesta quinta-feira (24), principal dia da folia, haverá as participações de Fulô de Mandacaru, Léo da Estakazero, Cicinho e Juli de Assis, Targino Gondim e Bete Nascimento.

Repórter conta sua experiência junina

Escrever essa reportagem foi um misto de alegria e de saudade. Lembrei de uma época, no longínquo 2018, quando saí de Salvador para fazer a cobertura do arraiá de Santo Antônio de Jesus. Enfrentamos quase 4h de congestionamento nos 190 km que separa a cidade da capital, dividindo a pista com carros particulares, ônibus e veículos de excursão, todos lotados. Seriam cinco dias de festa. 

Fomos serpenteando pela estrada até a cidade se descortinar à nossa frente. Santo Antônio tem uma característica interessante, à medida que o viajante vai se aproximando da cidade o estresse vai diminuindo até que ao descer do carro o indivíduo é outro. Mas o ar naquele dia estava frenético. Era notável que a cidade se preparava para um evento. Motoqueiros corriam ziguezagueando de um lado para outro, enquanto senhoras com sacolas pareciam se apressar antes dos mercados fecharem. 

A maior riqueza de SAJ é a simplicidade de sua gente, que é quase palpável nas conversas. Ao atravessar a praça as bandeirolas anunciavam o São João, que na cidade tem cheiro de milho assado. Quando a noite caiu a multidão foi chegando vindo de tudo que era canto. Muita gente abriu mão da bota e da camisa quadriculada, mas nem por isso capricharam menos no figurino. 

Antes do artista tocar a primeira nota a praça já estava lotada. Atrás da multidão ficavam as barracas com comidas e bebidas, típicas e tradicionais, uma diversão para as crianças, que corriam por todos os cantos. Jovens se aglomeravam em grupos e o clima de paquera era evidente. Santo Antônio de Jesus tem seguido a tendência de outras cidades de agregar à programação junina diferentes estilos, além do forró, e o público deu sinais de que conhecia todos. Houve até quem fizesse coreografia.

Depois do palco principal havia uma igrejinha, que foi construída para fazer parte do espetáculo, e ao lado dela um palco do legítimo forró pé de serra. Enquanto um sanfoneiro castigava a sanfona no toque de fole, casais se esbaldavam até suar, e davam sinais de que ninguém ia sair até o dia clarear.

No meio da festa chegaram os foliões que estavam no Forró do Lago, festa particular que acontece na cidade e que acaba no meio da programação oficial do município. Bom para os forrozeiros que emendam uma festa com a outra. Teve beijo, casal dançando coladinho, quadrilha improvisada, bêbado, valentão tentando arrumar confusão, e gente dançando depois que a banda já tinha parado. No final, barraqueiros com alegria contavam a última prata, e a cidade se recolhia para no dia seguinte começar tudo de novo.

O São João no CORREIO conta com o apoio da Perini, Mahalo, E Stúdio, ITS Brasil, Hotel Vila da Praia e Blueartes.