Se eu fosse o prefeito, daria essa negociação com a família Cravo por encerrada

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 2 de agosto de 2020 às 17:04

- Atualizado há um ano

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Mário Cravo (Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO) Mário Cravo, o escultor, era, em minha opinião, o único gênio - pelo menos que eu saiba - da conhecida família. Pioneiro da Arte Moderna, na Bahia, fez parte de uma geração de artistas baianos com uma potência que, talvez, nunca se repita. Pelo menos, ainda não consigo ver, no horizonte, mais um Mário Cravo, um novo Carybé nem outro Jorge Amado ou Dorival Caymmi. Não que nos faltem talentos, mas esses humanos - além do que trouxeram em si - também foram forjados em um tempo de fertilidades, ousadias e excentricidades genuínas e exacerbadas.

(Genialidade é diferente de talento, vocação, competência... bom, você sabe.)

Esse ambiente, talvez, você ainda possa intuir visitando a Casa do Rio Vermelho, em Salvador. O lugar onde moraram Zélia e Jorge foi transformado em um museu absolutamente vivo, pelos Amado. Entre eles, Maria João, minha amiga, neta do casal, que me deu, além da gostosa amizade, o presente de poder observar de perto - mesmo que não na intimidade - aquele lugar simbólico, enquanto a história acontecia. Éramos duas garotas e Zélia e Jorge ainda viviam na casa.

Anos depois - desta vez por motivos que não vem ao caso - pude sentar à mesa com Seu Mário. Na casa dele, algumas vezes. Ou um número suficiente de vezes para que eu pudesse ter alguns pensamentos definitivamente esculpidos por falas - dele - memoráveis. Lembro de muitos detalhes. O jeito de mover as mãos, a empolgação com que falava, o figurino criativo e de extremo bom gosto (há controvérsias, mas eu adorava). Sobretudo, lembro da minha excitação quando eu chegava naquela casa, via que ele estava e intuia que rolaria um papo.

Era uma honra ser convidada a pensar por aquele senhor que parecia saído de um universo paralelo, do planeta inteligência, do mundo das pessoas extraordinárias. Estávamos entre 2000 e 2001, e, desde então, nunca mais encontrei, pessoalmente, alguém que me causasse o mesmo impacto intelectual. Ele me fazia falar pouco, o que é uma coisa muito rara. Não que ele desejasse isso, mas eu não sou besta e não ia perder tempo falando demais, quando havia tanta coisa surpreendente e excitante a escutar. Está tudo aqui guardado.

Seu Mário, até onde eu sei, não ficou milionário. Talvez, inclusive, nem colocasse energia nesse tema, talvez não fosse meta, talvez não precisasse. Até onde ouvi falar, vivia momentos de dinheiro farto e outros nem tanto, de acordo com o fluxo das vendas de trabalhos. Talvez esse fosse o único aspecto comum daquela personalidade: a conhecida gangorra financeira de muitas pessoas que vivem das artes. Da mesma maneira, é comum que artistas maiúsculos como ele deixem descendentes com habilidade para multiplicar o patrimônio herdado. O que não tem o menor problema. É legítimo, claro. Isso nem se discute. Arte precisa gerar dinheiro, sim. Para quem produz e para quem herda dos antepassados.

Mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. E eu sinto muita pena quando (são muitos os casos), na multiplicação da herança, subtraem a memória, o simbólico, os laços. Foi essa a minha sensação ao saber que dois integrantes da família condicionam o acesso da Prefeitura de Salvador ao projeto original de uma obra de Seu Mário ao pagamento de um milhão de reais. Entenda: a prefeitura quer reconstruir a obra que já estava lá e foi destruída em um incêndio acidental. Eu não questiono o preço, não sou curadora de arte. Mas que sentido faz a cidade pagar duas vezes pelo mesmo projeto? Nenhum valor me parece razoável.

O que esses dois integrantes da família dizem é algo assim: para a prefeitura (que reconstruiria a obra com dinheiro público) poder olhar o projeto, custa um milhão de reais. Entendeu o drama? Além da evidente questão ética, nessa negociação há valores importantes dos dois lados, o que deveria gerar imediato consenso e cooperação. Se, por um lado, Salvador se interessa por manter seu patrimônio artístico e se responsabiliza pela execução da obra, é esperado ser interesse da família preservar todas as manifestações do vínculo entre o artista e a cidade. Sobretudo em um país de memória curta, imagino ser importante para a história do escultor que ele continue ocupando exatamente o mesmo espaço, que ele permaneça presente na paisagem onde escolheu estar.

Presumo - porque várias pessoas afirmaram - que Seu Mário não tenha cobrado para apresentar seus projetos, em situações análogas, em outras oportunidades. Acho que apenas esse exemplo já deveria bastar. Alguém pode dizer "por isso não ficou milionário". Sim, talvez. E a escolha da linha de pensamento cabe aos familiares. Aos de fora (eu, você e todo mundo, no caso) cabe apenas a reflexão sobre como herdeiros podem descaracterizar um artista, ainda que não toquem em um milímetro dos seus trabalhos. As formas podem permanecer idênticas, mas já não é a mesma coisa quando adulteram o simbólico, o sentido, a alma.

(É tudo tão aviltante que eu, se fosse o prefeito, daria essa negociação com a família Cravo por encerrada.)