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Fernanda Santana
Publicado em 26 de dezembro de 2021 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
Uma chama de fogo pode separar a fome da saciedade. Para quem está na rua, duas horas para cozer o feijão - a lenha - é demais. Melhor um grão que amacie rápido ou um macarrão que fique pronto em três minutos. Quando a fome vem, não dá para depender de muita lenha, muito fogo, nem muitas horas.>
Longe de qualquer condição ideal de preparo, quem está em situação de rua não apronta os alimentos da mesma forma de quem têm casa, fogão e gás. As doações de qualquer tipo são bem-vindas, dizem ativistas e voluntários. Mas isso não significa que se convertam em estômago cheio para quem está na rua. É preciso pensar em quem se quer alcançar. Ter feijão, frango e arroz ensacados não significa ter o que comer.“Outro dia doaram frango. Acho sacanagem. Até poupa de fruta... para pessoas que vivem na rua. Vai dar uma polpa de fruta para fazer o suco onde?”, pergunta Bárbara Trindade, ativista social que, há 22 anos, criou o projeto social 1 + 1 é sempre mais que dois. Sem ter como preparar, há pessoas que, na rua, recebem as doações de alimentos, mas não podem comê-las. Chegam a dizer não para a comida ou ingerem alimentos estragados pela falta de armazenamento. Há 12 anos, esta é uma história que Lucas Gonçalves, do grupo Salvador Invisível, vê se repetir - as comidas são doadas para pessoas em situação de rua e acabam em outros destinos, como abrigos.“Já houve pessoas que recusaram cestas básicas porque não tinham como, nem onde cozer alimentos. Já tive um casal de assistidos, em Brotas, que conseguia arroz e feijão, mas não conseguia a lenha, nem o etanol”, conta ele.Uma coisa Lucas repara com frequência: alguns alimentos doados, como o feijão, que faz parte dos itens de primeira necessidade, não cozinham facilmente no fogão a lenha improvisado nas ruas, porque são de péssima qualidade. Os grãos são mais duros, levam horas para amolecer.>
“Obviamente não estamos dispensando doação, mas precisamos pensar: se meu gás está acabando, eu vou fazer um feijão que demora duas horas para ficar pronto?”, pergunta. >
O voluntário pede que, quem pode, doe produtos de qualidade, como se estivesse abastecendo a própria dispensa. “Darei a coisa ruim, porque acho que para aquela pessoa é tranquilo?”, provoca Lucas. >
Para quem mora pelas ruas da cidade, há duas opções de fazer fogo e preparar alimentos. Uma é catar madeira e gravetos e, geralmente à noite, produzir chama. A outra, mais perigosa pelo risco de incêndio e queimaduras, é encher uma panela de etanol e riscar um palito de fósforo sobre ele. O álcool é adquirido em postos de gasolina.>
Nada garante lenha e álcool todos os dias. Quanto mais simples for o preparo dos alimentos doados, melhor. >
O que doar a pessoas em situação de rua? As pesquisas de maior abrangência sobre insegurança alimentar não citam a realidade alimentar de pessoas em situação de rua. Excluídas de tantas outras estatísticas, também ficam à margem do número de brasileiros que não sabem se, nem quando, farão a próxima refeição.“Esse assunto ainda é visibilizado, assim como todas as questões que envolvem essa população”, diz Luciana Maria Pereira Sousa, mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que pesquisa segurança alimentar e nutricional.Segundo a pesquisa Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil, coordenada pelo grupo de Pesquisa Alimento para Justiça, 53,9% dos brasileiros - 125 milhões - não comeram tanto quanto deveriam, nem com a qualidade devida.>
No início da pandemia, uma estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada mostrou que 221 mil pessoas estavam vivendo nas ruas brasileiras. De acordo com o Projeto Axé, 22 mil pessoas viviam em situação de rua em Salvador, em 2017. O número não foi atualizado oficialmente.>
O agravamento da pandemia e o desmonte de políticas sociais levou a um ciclo de perdas que inflou esse contingente. As doações se tornaram, para milhares, a única opção de fazer alguma refeição no dia.“Mas é importante estarmos atentas à qualidade dos produtos doados, isso envolve prazo de validade, embalagem e modo de armazenamento”, frisa Luciana.Há também alguns equívocos ao pensar em doação. “Não precisam ser os alimentos industrializados os mais viáveis”, ensina.>
O excesso de sal, açúcar, óleos e gorduras, ela diz, pode prejudicar ainda mais a saúde de pessoas “que já estão mais susceptíveis a problemas de saúde relativos a alimentação e nutrição”. >
Uma opção é a doação de refeições prontas - como sopas e outros pratos feitos, como arroz, feijão e carne. A Prefeitura de Salvador promove distribuição de quentinhas na cidade. “É uma estratégia importante para ajudar a aliviar a fome das pessoas em situação de rua que muitas vezes não têm também como preparar”, avalia. >
LISTA DE ALIMENTOS >
Macarrão Macarrão Instantâneo>
Frutas (de fácil armazenamento)>
Leite em pó>
Refeições prontas Arroz Feijão Óleo Cream Cracker Sardinha Farinha Farinha de Cuscuz Água (1,5 L) Salsicha enlatada Biscoito Gameleira>
*Fontes: Salvador Invisível e Luciana Maria Pereira Sousa, mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que pesquisa segurança alimentar e nutricional.>