Sem resposta: desaparecimento de Davi Fiúza completa 5 anos hoje

Mãe do adolescente, que na época tinha 16 anos, volta ao local onde ele desapareceu após ação da PM: 'sensação de impotência e saudade'

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  • Bruno Wendel

Publicado em 24 de outubro de 2019 às 05:15

- Atualizado há um ano

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Depois de alguns passos num chão de terra batida na comunidade de Vila Verde, Rute Fiúza leva as mãos à nuca e se pergunta: “O que eu poderia ter feito para mudar aquele dia?”. Talvez a resposta “nada” seja a única conclusão ao longo desses anos de angústia. O filho caçula dela, Davi Fiúza, 16 anos à época, continua desaparecido após uma operação da Polícia Militar no bairro de São Cristóvão, realizada há cinco anos completados hoje. Na segunda-feira (21), o CORREIO esteve com Rute no local onde Davi foi visto pela última vez – há quatro anos, ela deixou tudo e nunca mais tinha retornado.

“É triste e me remete a uma dor que não tem cura. Uma sensação de impotência e saudade. Foi aqui que aprendi que as pessoas não são tão boas como acreditava. É duro não conviver mais com alguém que é um pedaço da gente. Foi onde metade de mim foi arrancada e até hoje não sei onde está”, declarou.  Para ela, pior do que a notícia da morte é viver sem notícia alguma. “É uma ferida que nunca fecha, é algo que nunca cicatriza”, desabafa. Davi Fiúza (Reprodução) O Estado Brasileiro teve até o dia 26 de agosto para prestar esclarecimentos ao Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (Acnudh) sobre o desaparecimento de Davi Fiúza. “A resposta foi dada e está em sigilo, o que eu acho um absurdo. A sociedade tem o direito de saber a resposta do governo brasileiro”, declarou Rute.

Pela demora na resolução do caso e em virtude do Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados, no dia 30 de agosto, a Anistia Internacional cobrou que as respostas do estado brasileiro ao Acnudh sejam tornadas públicas. O Alto Comissariado tinha feito questionamentos ao país em uma carta enviada no último dia 26 de julho. O CORREIO cobrou um posicionamento do Palácio do Planalto, mas não obteve retorno.

Lembranças Após o desaparecimento de Davi Fiúza, Rute ainda morou em Vila Verde por um ano, mas precisou sair do local, pois as lembranças do filho eram frequentes. “Tudo me lembrava o pior dia de minha vida. Precisava me desintoxicar não só dali, mas de Salvador, porque tudo me lembrava ele. Saíamos muito juntos”, disse ela. Rute Fiúza (Marina Silva/ CORREIO) Rute então saiu da Bahia e foi morar em outro estado. Retornou à Bahia há alguns meses e concordou em ir ao local do desaparecimento com o CORREIO. “A vida precisa seguir e, para isso, a gente precisa enfrentar nossos fantasmas”, disse ela.

Na segunda-feira (21), por volta das 11h, a equipe encontrou com Rute num determinado ponto da cidade e seguiu com ela para a comunidade de Vila Verde. No trajeto, o silêncio foi quebrado com alguns assuntos corriqueiros e brincadeiras. Por volta do meio-dia, a poucos minutos de Vila Verde, Rute não escondeu a aflição.

Com os olhos marejados e a voz carregada de dor e raiva, Rute disse: “Evito passar naquela área, principalmente no bairro onde ele foi levado, porque isso me remete a tudo outra vez. Naquele lugar onde despertei para vida, também me trouxe a morte. Foi naquele lugar que passei a morrer todos os dias. A vida de minha família virou de cabeça para baixo. A gente procura o porquê, mas não tem explicação”, disse ela.

Por uma rua estreita e cercada de casas de tijolos, a equipe do CORREIO e Rute chegam à Rua São Jorge, na localidade de Vila Verde. Para ter acesso ao local onde Davi desapareceu, é preciso descer uma ladeira de chão batido até o final de um morro. Já na parte plana da via, casas e matos compõem o cenário.

No final da rua, foi também a nossa parada e o fim de Davi. “Depois que aconteceu isso, eu não tenho mais medo da morte, é que talvez seja a única coisa que pode me aproximar dele. Uma parte de mim já morreu e a outra que restou vai partir de boa”, disse Rute, antes de descer do carro.

Como quem não quer demorar, ela se apressa para mostrar o local exato onde foi o início de tudo e aponta para um pequeno morro e diz: “Ele desceu dali, ali mesmo. Mas tudo mudou. Construíram mais casas, o mato cresceu demais. Mas é impossível esquecer”, contou a mãe.

O crime Davi saiu de casa para ir à casa da namorada e foi para uma rua sem asfalto, onde encontrou com um morador – ele então teria parado perto de uma guarnição com quatro alunos da PM, entre eles, uma mulher. “Pegaram ele aqui, em frente a esse poste de iluminação”, apontou Rute.

Na saída de Vila Verde, Rute falou das lembranças de Davi. “Ele era muito companheiro. A gente tinha uma ligação espiritual. Quando fiquei grávida dele, sonhei com ele. E ele nasceu exatamente com o rosto que eu vi. Estava no começo da gravidez, como já tinha tido quatro filhos, achava que seria outra menina. No sonho, pegava ele nu, dizia: ‘que menino gordo, bonito, sem cabelo’. Aqui dele (passando a mão nas laterais da cabeça) era tudo raspadinho, só um pipão. E ele nasceu exatamente daquele jeito. Um sonho bom que durou 16 anos”, lembrou.

Ela contou ainda que Davi era apegado a ela e às irmãs. “Ele foi muito mimado pelas irmãs. No dia que eles levaram, ele estava exatamente com as roupas novas dadas pelas irmãs. A sandália amarela só tinha um dia de uso. Ele adorava perfumes, hidratantes. Essas coisas eu doei tudo. Lembro dele todos os dias.” Com isso, a reportagem e a mãe de Davi deixaram o local. Nenhum vizinho quis dar entrevistas.

Justiça Militar O processo que apura o desaparecimento de Davi Fiúza será julgado pela Justiça Militar. A decisão foi da juíza Ailze Botelho Almeida Rodrigues, que tomou como base a Lei 13.491/17, de outubro de 2017, que diz que todos os crimes cometidos por policiais militares serão julgados pela Justiça Militar, com exceção de homicídios, que continuam na justiça comum.

Segundo a assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), “está sendo feita a conclusão da instrução processual para proceder oitivas das testemunhas e dos réus”.

A decisão foi expedida no dia 12 de setembro de 2018 - dois dias após o Ministério Público do Estado (MP-BA) denunciar sete policiais militares por sequestro e cárcere privado do adolescente. Os policiais são: Moacir Amaral Santiago, Joseval Queirós da Silva, Genaro Coutinho da Silva, Tamires dos Santos Sobreira, Sidnei de Araújo dos Humildes, George Humberto da Silva Moreira e Ednei da Silva Simões.

O CORREIO perguntou à Polícia Militar de que forma a Corregedoria está acompanhando o processo e as patentes dos policiais, uma vez que alguns, na época, faziam o curso de formação da PM. A resposta da corporação foi: “Sugerimos que solicitem detalhes das informações à Polícia Civil onde o fato foi registrado e está sendo investigado. Sobre detalhes dos envolvidos no fato, não serão divulgados até que o inquérito chegue ao fim”.

O Ministério Público do Estado (MP-BA) informou que acompanha o caso e aguarda o recebimento da denúncia.