Semanas difíceis

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  • D
  • Da Redação

Publicado em 3 de maio de 2020 às 13:11

- Atualizado há um ano

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Escrevo este texto na varanda do apartamento que moramos enquanto observo Bento brincando com seus brinquedos. Seus hábitos estão mudando. Nas últimas 6 semanas, todas elas em confinamento, percebo que meu garotinho está diferente. Toda vez que falo em sair pelo bairro para dar uma volta de bicicleta ou fazer uma caminhada pra recarregar as energias com a luz do sol, a resposta é uma negativa com tom decisivo. Não sou psicólogo para diagnosticar nada, mas minha sensação é que toda esta história de isolamento está deixando meu pequeno com um medo maior do que eu gostaria que ele tivesse. Mas o que fazer para que toda a incerteza quanto ao amanhã não contagie o comportamento da casa e, consequentemente, provoque este tipo de reação também em nós?

Não tem resposta pra minha pergunta. Em casa somos 24 horas por dia e 7 dias por semana ativos nesse assunto. Eu trabalho orientando empresários sobre transformação digital em meio a pandemia. Minha mulher é jornalista e está cobrindo bem de perto tudo relacionado a Covid-19. Por mais cuidadosos que sejamos em não ficar falando sobre isso o tempo inteiro dentro de casa, é praticamente inevitável que ele tenha contato com tudo. O mundo do nosso Bento mudou nos últimos 50 dias. A escola está parada. As idas à praia, proibidas. Receber seus amiguinhos em casa é coisa do passado. O que nos resta é criar formas para que ele tenha algum tipo de contato virtual com a antiga vida normal. Ligação via FaceTime com amiguinhos. Passeios de carro pela cidade com os vidros fechados. Haja imaginação para manter a mente dele sã. E a nossa. Definitivamente, quarentena não é nada agradável.

Há noites em que Bento rompe o silêncio da madrugada com um choro que não o desperta. Fala palavras que não conseguimos entender. E no dia seguinte quando perguntamos se houve algum pesadelo, a resposta é não. O google nos dá pistas. Talvez um terror noturno? Não sabemos. Cada vez que dou um google a ansiedade aumenta. Não é nada grave, tenho certeza. Pelo menos imagino, e desejo, que não seja. Acho que nosso menininho está com saltos de crescimento. O pensamento corre acelerado durante a noite. E quando ele mergulha eme sonhos, tudo deve se misturar na cabecinha. Deve ser uma explosão de absorção de percepções e sentimentos. Estamos mais tensos no dia-a-dia, é óbvio. Alguém não está? Provavelmente ele sente tudo isso sem falar nada pra nós. Mesmo que quisesse falar, não imagino que tenha idade suficiente para que ele nos aborde para discutir sobre estresse e tensão. Com isso, tudo vai sendo internalizado silenciosamente.

Já falei que não sou psicólogo pra diagnosticar, certo? Pois é, cá estou eu diagnosticando tudo. Por sinal, talvez um dos reflexos desta loucura que estamos vivendo seja sermos possuídos pela ilusão de ocupar o lugar de voz de posições que não nos pertencem. Viramos médicos, especialistas políticos, economistas renomados e julgadores profissionais. Culpa nossa? Não sei. Talvez a pandemia tenha colocado luz em um lado que todos nós temos: a arrogância de nos acharmos além do que convém. Como disse o filósofo, só sei que nada sei. Parece um bordão barato e lançado de forma simplória, mas não é. Quanto mais me informo sobre a expectativa de sairmos dessa, mais essa frase faz sentido. Durante a semana, num papo com um amigo advogado bastante otimista, percebi que a fala positiva perdeu força.

- Gustavo, acho que tudo isso vai acabar - talvez - só depois de julho.

Até aqui, sempre ouvi dele que depois de maio já teríamos tudo resolvido.

Talvez a pandemia cumpra um propósito específico: provar pra todos nós que não temos controle de nada. O filho que perde o pai e não pode se despedir durante o velório pode atestar isso. O país está em chamas. A economia derrete dia após dia de isolamento. A estabilidade está sendo enterrada em caixões empilhados nas valas comuns da recessão. Você e eu estamos na mira da onda viral. Nossos pais e filhos estão. Motivo pra desespero? Jamais. Mas precisamos reconhecer que as próximas 6 semanas no Brasil têm tudo pra ser muito pior do que as 6 primeiras semanas que vivemos até aqui.

Meu filho continua concentrado nos brinquedos. São 18h de sábado. O banho já está sendo preparado. Ele nem percebeu que está com sono. Não admite isso. Quer continuar vivendo este momento gostoso e imaginativo de olhar para cada coisa inanimada e conceder vida própria pra tudo na imaginação. Me pego pensando: “Será que muitos de nós não estamos tão concentrados nos nossos “brinquedos” da vida adulta a ponto de ignorar o que nos espera para logo menos?”. 

Não desejo desespero para você. Pelo contrário. Minha fé projeta paz para nós. Mas precisamos estar prontos para tudo por todos. Fique em casa. Viveremos semanas difíceis.

Isolado há 6 semanas, Gustavo Teles. Pai de Bento. Esposo de Ana Raquel.