Será uma Olimpíada demasiado sobre-humana

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  • Gabriel Galo

Publicado em 22 de julho de 2021 às 05:32

- Atualizado há um ano

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Descia eu uma ladeira de Copacabana por onde há poucos instantes o triatlo queimava as coxas dos atletas que sofriam para subir o inclinado. Dali, vi vários abandonarem, outros perderem posição. Nas calçadas, a multidão global se aglomerava para torcer ou apenas acompanhar – a curiosidade por um evento da magnitude de uma Olimpíada é mais que justificável. Era uma confusão de idiomas, gente que nem sabia ao certo como o triatlo funciona e acenava em incentivo. Em comum, a felicidade por estar ali, num Rio de Janeiro em paz.

Enfim, dizia eu que descia a ladeira. A multidão há poucos instantes se dispersara, e decerto fora aos mesmos locais onde dentro de poucos minutos também eu lá estaria: bares e restaurantes e calçadões.

E ali, enquanto eu descia a ladeira, em minha frente também descia um senhor de bermuda, regata e chinelo, que ao virar o rosto mapeando o em redor, me despertou um senso inadequado de pertencimento. Carioca nunca fui, mas do mundo, bem, posso até assim me dizer, em tempos olímpicos há de ser suficiente: era o Ruy Castro. Em vestes tão cariocas quanto brasileiras, descendo uma ladeira qualquer de Copacabana depois que a muvuca se afastou de seu quintal.

No bar, na sequência, a feijoada veio no capricho, a cerveja veio trincando, o cardápio veio em quase-inglês, até o serviço, pasmem, era superior – talvez a perspectiva da gorjeta em dólar impulsionasse o bom atendimento – e o vai-e-vem da rua era de uma energia contagiante. Era um outro mundo dentro da Olimpíada.

Absorva: se os sobre-humanos do esporte venciam o dia a demonstrar incontestáveis ações de superioridade física, cabia no after hours que os comuns os substituíssem em tarefas demasiado humanas, buscando o refresco e a delícia do prazer – enquanto, não se iludam, os astros da festa também assim se comportem no aconchego da Vila Olímpica. (E se você come o reggae do puritanismo da cama de papelão, imploro: liberte-se, porque a verdade vem com suor e fluidos.)

Em Tóquio, no entanto, não haverá frisson nas arquibancadas, muito menos o bate-bate do lado de fora. As grandes histórias de superação permanecerão como centro das transmissões, com direito a musiquinha melosa e lágrimas induzidas. Sempre haverá um recorde inalcançável sendo batido, um vencedor improvável. Seguirá o ufanismo da transmissão. O enredo para estes permanece. A questão é depois.

Ao vencer, não poderão correr para a multidão. Não haverá catarse coletiva. De cá, acompanharemos tudo pela frieza frígida dos aparelhos. E ainda, diacho, num horário que não ajuda. Será, pois, uma Olimpíada demasiado sobre-humana. Faltará o sal de quem poderia dizer com orgulho que lá esteve, que lá viu, que testemunhou in loco a história sendo escrita. Porque é este fator que transforma histórias em mitologia.

Se o esporte é a celebração da vida, e os Jogos Olímpicos são a celebração do esporte, veremos lançar-se mão do esforço retórico para encaixar esperança de retomada à normalidade em tempos de pandemia. Não nego o viés. Mas será, na distância e no silêncio de centros inabitados, um evento que terá ocorrido, mas não unido. Afinal, quem são os deuses sem os comuns para que sejam comparados e, por óbvio, alçados ao panteão da glória?

Restará o fio da história central, sem tramas paralelas às escondidas. E certamente não terá Ruy Castro finalmente livre para ganhar as ruas de uma Copacabana que presenciou – quem estava lá, viu, eu juro – a Olimpíada acontecer em todo seu esplendor. Não me acusem, no entanto, de saudosista além da conta. A saudade é de juntar gente, essa, sim a máxima celebração da vida.

Gabriel Galo é escritor e não vai perder quase nada das Olimpíadas.