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Paulo Sales
Publicado em 13 de abril de 2020 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Tenho aproveitado os dias de confinamento para ler mais do que o habitual. Leituras diurnas, despidas do cansaço e da rotina. Depois da convivência com Marcel Proust (o primeiro volume da saga Em Busca do Tempo Perdido), passei para Herman Hesse e seu O Lobo da Estepe. Agora desbravo Andaimes, de Mario Benedetti. Cada um deles me transporta para universos totalmente inusitados e radicalmente distintos. Da alta classe parisiense esnobe e culta de fins do século 19 para um mundo onírico e sombrio do período entreguerras, provavelmente em alguma cidade alemã, e dele para o Uruguai recém-saído de uma ditadura militar, já nos anos 80.>
Quando disse que iria ler, tardiamente, O Lobo da Estepe, alguns amigos se mostraram entusiasmados, salientando como o romance foi fundamental na sua formação, como leitores, durante a juventude. Talvez seja isso mesmo: um livro para ser lido quando o mundo ainda pede para ser desbravado e temos a impetuosidade necessária para tal empreitada. A mim não entusiasmou. Achei em alguns momentos envolto num misticismo datado, embora tenha mergulhado fundo na narrativa e me impressionado com a imaginação prodigiosa de Hesse e com a figura do outsider que carrega dentro de si um oceano de angústia.>
Há momentos de esplendor, como esse trecho: “E quem buscava entre os escombros da vida o seu significado esvoaçante, que sofria com a aparente insensatez, quem vivia com o que parecia louco, quem esperava em segredo no último e confuso abismo a revelação de Deus e sua vinda?”. Ou no diálogo em sonhos do personagem principal com Goethe, que afirma: “Sempre vivi em luta contra a morte, temendo-a sempre. Creio que a luta contra a morte, a obstinação absoluta de querer continuar vivo, seja a força motivadora que jaz sobre as vidas e atividades de todos os homens representativos. Com meus oitenta e dois anos, meu jovem amigo, consegui provar apenas que o homem tem de morrer afinal, da mesma forma como teria morrido quando era um escolar”.>
Pensando bem, creio que O Lobo da Estepe mexeu comigo mais do que imaginei. Nos últimos dias tenho pensado nele, sobretudo em trechos como esses que citei acima. Porque é bem provável que eu, aos cinquenta anos, ainda enxergue o mundo como algo a ser desbravado. Talvez me falte impetuosidade, mas não o desejo de explorar, expandir, ir além. Será que aconteceria o mesmo se relesse agora os livros que fizeram a minha cabeça na juventude? Fico imaginando se voltaria à estrada para pedir caronas e conhecer o âmago da vida, como fiz aos vinte anos, influenciado pelo On the Road de Jack Kerouac, minha bíblia particular daqueles tempos.>
Provavelmente não. Mas às vezes, preso em casa nesta quarentena insana, ao receber o vento morno no rosto enquanto bebo um vinho na varanda, eu me sinto como um velho lobo ansiando pelo retorno à estepe e pelo prazer de dilacerar uma presa.>