Sobre princesas e abolições: 130 anos da Lei Áurea 

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Publicado em 15 de maio de 2018 às 13:00

- Atualizado há um ano

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“Treze Catorze  Maio desmaios

tsunamis vendavais tornados  corpos arremessados

desigualdades abissais naufrágios esquecimentos tantos Treze Catorze Maio deu branco”                                                                                  Catorze, de Juraci Tavares

Texto originalmente publicado no site Flor de Dendê.

Em 13 de maio de 2018, a Lei Áurea, Lei Imperial nº 3.353, completou 130 anos, sem que a anunciada abolição da escravidão tenha, até os dias de hoje, sido capaz de apagar os deletérios efeitos de quase quatrocentos anos de sistema escravocrata.

O projeto de lei foi apresentado na Câmara Geral em 8 de maio de 1888, tendo obtido 83 votos favoráveis e nove contrários. Passada da Câmara ao Senado Imperial, a Lei foi votada e aprovada, em definitivo – desta feita com seis votos contrários –, no dia 13 de maio de 1888, sendo levada à sanção no mesmo dia. Sancionada pela Princesa Dona Isabel – então regente do trono do Império do Brasil, em virtude do afastamento do seu pai, D. Pedro II –, a Lei dedicava apenas dois artigos à abolição do regime escravocrata mais duradouro do Ocidente: 

“A princesa Isabel Regente em nome de Sua Majestade o Imperador D. Pedro II faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e Ela sancionou a Lei seguinte:

Art. 1 º - É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil.

Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário.

Manda, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém.

O Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e Interino dos Negócios Estrangeiros, Bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de Sua Majestade o Imperador, o faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888 – 67ª da Independência do Império.”

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A Lei Áurea não deve ser vista como um ato de benevolência que concede liberdade às pessoas escravizadas. Essa é a história romantizada e subvertida, contada sob a perspectiva do colonizador, e ainda repetida pelos livros didáticos. A declaração da abolição foi resultado de um longo processo de luta e resistência do povo negro – por meio de revoltas, formação de quilombos, fugas em massa, queima de engenhos e destruição de fazendas, suicídios e envenenamentos –, aliado ao movimento abolicionista, além da pressão internacional sofrida pelo Império brasileiro. 

Último país do Ocidente a abolir a escravidão , o Brasil adiou ao máimo a emancipação, por meio de leis supostamente abolicionistas, mas que garantiam a continuidade da lucrativa exploração da mão de obra dos escravizados. 

Ao contrário do que por muito tempo se propagou, a escravidão no Brasil, longe de ser cordial, foi das mais cruéis do sistema escravocrata colonialista das Américas, e gerou resistência desde os primeiros anos de sua instituição, por volta de 1550. A luta pela abolição da escravatura remonta aos quilombos do século XVII, tendo na República dos Palmares – situada na Serra da Barriga, em Alagoas, e liderada por Zumbi – seu mais pujante símbolo. O anseio abolicionista transpôs-se também para o Parlamento, quando se pretendeu, sem sucesso, incluir a extinção da escravidão na primeira constituição brasileira, a Constituição Imperial de 1824. 

Com efeito, em sua Representação sobre a Escravatura, de 12 de novembro de 1823, José Bonifácio – conhecido como Patriarca da Independência e então Deputado pela Província de São Paulo – defenderia , perante a primeira Assembleia Constituinte do País, a necessidade de abolir o tráfico de africanos para o Brasil, de melhorar a sorte dos cativos e de promover sua progressiva emancipação   . Dissolvida a Assembleia, a Constituição acabou por ser outorgada por D. Pedro I, em 24 de março de 1824, afirmando a igualdade de todos perante a lei, sem sequer mencionar o termo escravidão. 

O interesse britânico pelo livre mercado e mão de obra livre – condições que se impunham pelo sistema econômico impulsionado pela Revolução Industrial – reforçava, em âmbito internacional, o processo de extinção do tráfico negreiro e do regime escravocrata. Nesse contexto, em 23 de novembro de 1826, foi assinada uma convenção entre Inglaterra e Brasil, para que este extinguisse o comércio de escravos vindos da costa africana, no prazo de máximo de três anos. Ratificado em 13 de março de 1827, o tratado deu origem à promulgação da Lei Diogo Feijó, de 7 de novembro de 1831, que declarava livres todos os escravos vindos de fora do Império , e impunha penas aos importadores. A sanção imputada aos importadores era pena corporal, conforme artigo 179 do Código Criminal , cumulada com multa de duzentos mil réis por escravo, e, também, com o pagamento das despesas de reexportação do escravo para qualquer parte da África. A Lei – que, à época, significaria a liberdade de pelo menos metade das pessoas escravizadas até então, e, ainda, de mais de um milhão daquelas trazidas até 1850, quando o tráfico foi efetivamente contido – jamais foi aplicada, o que lhe rendeu a alcunha de lei para inglês ver. O africano livre era uma falácia reforçada pela regulamentação do Decreto de novembro de 1835, que instituiu a figura do arrematador. A este era reservado o direito de arrematar os serviços dos africanos – livres apenas na letra fria da lei, mas, na prática, reescravizados –, que apenas poderiam requerer sua liberdade após quatorze anos de serviços prestados ao arrematador.

Apenas em 4 de setembro de 1850, a Lei nº 581, conhecida como Lei Eusébio de Queiroz, determinou o fim do tráfico negreiro intercontinental – que passou a ser considerado pirataria – sem, contudo, restringir a prática da escravatura no Brasil. Com mais de 500% de lucro, o tráfico de escravos era tão rentável quanto atroz. Por isso, mesmo com a média de 25% dos escravizados que morriam no trajeto ou, ainda, com a perda total da carga – eventualmente afundada para encobrir as provas do tráfico, quando da interceptação por navios britânicos –, era mais vantajosa a reposição de peças do que o custo com a manutenção destas. Diante dessa realidade, a Lei Eusébio de Queiroz chegou a estimular o tráfico, por ter resultado no aumento do preço da mercadoria humana, e, portanto, do lucro dos traficantes brasileiros e portugueses que, durante alguns anos, ainda tiveram na ausência de efetiva coibição, a garantia da continuidade de seus negócios. 

Em 18 de setembro de 1850, foi aprovada a Lei nº 601, primeira Lei de Terras do Brasil, estabelecendo que, a partir de então, a aquisição de terras só poderia ser feita mediante compra, não sendo mais reconhecida a aquisição por meio de posse das áreas ainda não apropriadas ou doadas pelo Estado. Além de beneficiar a aquisição de terras brasileiras pelos colonos, a Lei tinha como foco a inviabilização da aquisição de propriedade pelos negros libertos e a desocupação dos quilombos já formados. 

A Lei nº 731, de 5 de junho de 1854 (Lei Nabuco de Araújo), por sua vez, intensificou a repressão ao tráfico negreiro e atribuiu aos auditores da Marinha a competência para processar e julgar aqueles que violassem o artigo 3º da Lei Eusébio de Queiroz.

Em 15 de setembro de 1869, o Decreto nº 1.695 proibiu a venda de escravos debaixo de pregão e em exposição pública, tornando-as nulas, e sujeitando o leiloeiro a uma pena de multa por escravo leiloado. Proibiu, também, vendas de escravos, particulares ou judiciais, que separassem marido e mulher, ou o filho do pai ou da mãe, salvo nas hipóteses de filhos maiores de quinze anos de idade.

A Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, denominada Lei dos Nascituros ou Lei Rio Branco – mais conhecida como Lei do Ventre Livre –, considerava livres os filhos da mulher escrava, nascidos no Império, após a data de sua promulgação , sem, contudo, libertar suas mães. A Lei determinava, ainda, que os filhos menores das escravas – chamados ingênuos – ficassem sob a tutela dos senhores de suas mães, que deveriam criá-los e tratá-los até completarem oito anos de idade. Após essa idade, o senhor teria a opção de receber uma indenização do Estado ou de se utilizar dos serviços dos ingênuos até que completassem vinte e um anos. Durante o regime escravocrata, eram comuns os testemunhos de abortos, em grandes proporções, provocados por mulheres escravizadas, no intuito de evitar que seus filhos tivessem a mesma sorte que elas. 

A luta pela abolição se propagou pelo Brasil, antecipando a emancipação em algumas províncias. No Ceará, desde 1881, os jangadeiros passaram a negar o transporte de escravos para os navios, ao que se somou, em 1º de janeiro de 1883, a entrega de cartas de alforria a 116 escravizados, na Vila do Acarape – depois denominada de Redenção. Finalmente, no dia 25 de março de 1884, o Ceará se tornou a primeira província do Brasil a declarar oficialmente a abolição da escravatura. No mesmo ano, no dia 24 de maio, foi declarada extinta a escravidão em Manaus, fato que impulsionou igual decisão, em 10 de julho de 1884, na província do Amazonas, segunda no País a declarar formalmente abolida a escravidão. Os acontecimentos nas províncias precursoras abriram caminho para atos localizados de libertação, em cidades localizadas no Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. Recordem-se, ainda, as libertações garantidas a partir de decisões dos Tribunais nas chamadas ações de liberdades. 

Nessas circunstâncias de constante avanço da abolição e de intensificação das pressões externas, na sequência legislativa, veio a Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885 (Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotegipe), que regulamentava a extinção gradual do elemento servil, libertando, sob as condições nela estabelecidas, os escravos maiores de sessenta anos de idade. Digna de nota é a condição estipulada no §10 do artigo 3º, que obrigava os escravos beneficiados pela lei a prestar serviços aos seus ex-senhores, pelo período de três anos, a título de indenização pela sua alforria. Frise-se a inocuidade da medida de libertação, uma vez que a média de vida do trabalho escravo no campo era de 10 a 15 anos , sendo raro que um cativo alcançasse a idade prevista na Lei.

Enfim, a Princesa Isabel assinou a Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888, que declarou extinta a escravidão, com revogação de todas as disposições legais em contrário. Símbolo da formalização legal da extinção da abolição da escravatura no Brasil, a Lei Áurea resultou na libertação de apenas 700 mil pessoas , que ainda estavam escravizadas naquele final do século XIX. A tardia lei declaratória da abolição da escravatura formalizava o que, na prática, já vinha se concretizando, desde o início da década de 1880, e terminou por “libertar o homem branco dos escravos”. 

Áurea  apenas no nome e na pomposa solenidade que marcou sua sanção , a Lei Imperial não pretendia concretizar valores nobres. Assinada no Paço Imperial, às treze horas, de um domingo, em sessão extraordinária, a última lei do Império – talvez a mais curta e mais conhecida do Brasil – foi festejada em todo o País. Passada a euforia, a questão principal permanecia escancarada, inocultável pela lacuna legislativa. A tão esperada lei silenciou: nenhuma palavra quanto ao destino dos libertos! Estes não receberam qualquer tipo de reparação, apoio ou recurso pelos quase 400 anos de trabalho forçado, sob tortura e opressão. Ao contrário, tentou-se a indenização aos ex-senhores de escravos, por meio do projeto de lei do Barão de Cotegipe, de 19 de junho de 1888 – que autorizava o Governo brasileiro a indenizar os proprietários dos escravos libertos – desígnio que, ao menos, também não logrou êxito. 

Não bastasse o silêncio tão eloquente quanto conveniente da lei, a fase pós-abolição foi marcada por uma política de branqueamento da população – fundada no racismo científico eugenista –, associada à imigração subvencionada de europeus. Era necessário embranquecer o País, para livrá-lo da mancha negra e garantir a purificação do sangue brasileiro, e nesse sentido atuaram as leis de imigração  daquele período. Os imigrantes europeus ocuparam os postos de trabalho e tiveram o acesso à terra facilitado, prerrogativas que não foram garantidas aos recém-libertos. O trabalho dos africanos e de seus descendentes foi explorado até a última gota de sangue e suor. Mas quando sua mão de obra não mais interessava às elites escravocratas, descartáveis, foram substituídos pelos imigrantes europeus. 

Nesse momento da história, impede-se a formação de uma classe média negra no País. Criam-se obstáculos intransponíveis à inserção dos negros na sociedade brasileira, muitos dos quais permaneceram nas terras dos seus senhores em condições precárias de trabalho e, até mesmo, sem nenhuma remuneração, apenas para assegurar o que comer e onde morar. Fomos lançados à nossa própria sorte; empurrados das senzalas às favelas; criminalizados e perseguidos; relegados à miséria, à fome e ao encarceramento em massa. Foi assim que, “atirando os africanos e seus descendentes para fora da sociedade, a abolição exonerou de responsabilidades os senhores, o Estado e a igreja” , condenando-os à escravidão em liberdade. 

O Estado brasileiro, entretanto, não foi apenas omisso. Ele participou, por meio de seu aparato jurídico-político, da construção dessa sociedade racialmente hierarquizada na qual ainda vivemos. Desse modo, tem a obrigação de desconstruir essa realidade de racismo institucional e estruturante que se arrasta até os dias atuais, refletindo-se em fenômenos bio(necro)políticos como o extermínio da juventude negra, o aumento do feminicídio de mulheres negras, maiores taxas de mortalidade infantil e materna entre as pessoas negras. Enquanto a raça for um fator que condiciona o acesso das pessoas aos direitos fundamentais, o Estado deve continuar pautando a questão racial para promover igualdade em direitos e de oportunidades.

Se pensarmos na abolição da escravatura como um processo de concretização de efetiva liberdade, percebemos, então, que a Lei Áurea declarou uma pseudo abolição; iniciou um processo de abolição ainda inacabado. A desigualdade racial que afeta o acesso de mais de 50% da população brasileira aos direitos fundamentais, como saúde, moradia e educação, atinge diretamente e de forma muito intensa a própria liberdade das pessoas negras. Estas não possuem, na prática, o mesmo direito de liberdade, seja de ir e vir, seja de escolher suas profissões, seja de acessar os espaços de poder, dentre eles as universidades, o sistema de justiça e os cargos políticos. 

Assim, o dia 13 de maio não é uma data a ser celebrada . Revela uma ferida aberta, jamais cicatrizada. Mas essa data também não pode mais passar em branco. É preciso resgatar nossa memória esquecida, amnésia coletiva; desvelar nossa vergonha.  É momento de refletir sobre o quanto ainda precisa ser feito para reparar a dívida histórica que o Estado brasileiro possui com a população negra. É tempo de continuar a luta, preencher as lacunas da história.

Mas, especialmente nos 130 anos do esboço de abolição, algumas coincidências parecem gritar, insistindo em nos tirar da zona de conforto, da apatia negligente, da amnésia inebriante. Trata-se também de um domingo – como aquele da assinatura da Lei Áurea – e dia das mães. Impossível não recordar as mães de maio, mães pretas cujos mais de 400 filhos pretos foram sumariamente executados. Corpos amontoados, navios negreiros, capitães do mato. E me vêm à mente milhões de mães pretas escravizadas, aviltadas, desgarradas de seus filhos e filhas, obrigadas a dar à luz a tanto(a)s outro(a)s. Nossas mais velhas, realeza ancestral, rainhas da diáspora negra, ventres do mundo. Traçaram os caminhos para que sigamos construindo nossos passos livres; nada a temer! E, então, lembro-me, com gratidão, da princesa. Sim, da princesa Aqualtune ! A benção, minha mãe!

*Lívia Vaz é mulher negra, promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia (MP-BA), mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direitor da Universidade de Lisboa. Coordena o Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (GEDHDIS) e o Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher e da População LGBT (Gedem) do MP-BA.