Sono dos justos. Pra quem?

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  • Da Redação

Publicado em 21 de junho de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

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A solidão e a espera de uma mãe, filha, amante no excelente Se a Rua Beale Falasse (foto/divulgação) Os últimos meses têm sido de sensações intensas para a maioria das pessoas por conta da pandemia do novo coronavírus (covid-19). Para as populações mais vulnerabilizadas, a situação é ainda pior. Ansiedade e medo ao sair nas ruas e, ao mesmo tempo, a necessidade de garantir o pão de cada dia é uma equação controversa, mas se tornou cotidiana.  Ficar em casa é privilégio para poucos, sobretudo para população negra brasileira, que já sofria antes da covid-19, segue sofrendo agora com o vírus e, possivelmente, continuará sofrendo no pós, caso todos e todas não entendam que, o “normal de antes”, não pode ser o normal de amanhã. Ficar em casa e imediações, inclusive, para nós, negros(as), que vivemos em comunidades periféricas, não é sinônimo de segurança: João Pedro e Agatha Félix (in memorian) são provas disso.

Das últimas dores que tivemos no nosso país (e aqui quero me ater apenas ao Brasil, não me ampliando ao debate sobre os EUA e ao belo movimento do Black Lives Matter pelo mundo), a que mais me marcou, e diariamente toma meus pensamentos, é o caso da terrível morte de Miguel Otávio, cinco anos, e a dor de Mirtes Renata, a mãe do garoto. Peço licença ao Instituto Odara, de Salvador, para utilizar nas próximas linhas o nome de sua campanha Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar como inspiração para traduzir um pouco o quanto sigo e seguirei em consternação com o fato.71 pessoas de pele preta são assassinadas no Brasil a cada 100 homicídios, segundo o Atlas da ViolênciaPressupomos que Mirtes perdeu noites quando Miguel era um bebê. Noites de alegria por cuidar e ver o filho crescer. Sabemos que, provavelmente, Mirtes perderia o sono a partir do momento em que Miguel passasse a sair sozinho, na infância e/ou adolescência, mesmo que fosse para comprar pão. Nós, negros e negras, sabemos que, possivelmente, Mirtes também ficaria acordada, atenta, esperando o filho, já adulto, voltar da escola, universidade ou do trabalho. Infelizmente, hoje, temos a certeza de que Mirtes não dormirá mais com o coração em paz, e, desta vez, porque o filho dela não vai chegar.

Há quatro anos, em Costa Barros, no Rio de Janeiro, cinco adolescentes e jovens foram assassinados dentro de um carro por policiais militares, quando voltavam da comemoração do primeiro salário de um deles: o de Roberto. Joselita de Souza, a mãe de Betinho, não suportou a tristeza. Isso é muito devastador. Observo minha mãe, minhas tias, minhas amigas, minha sogra... Elas estão sempre amorosas, mas também, muito preocupadas. Ser mãe em um país como o Brasil não é tarefa fácil para as mulheres negras. Se eu, enquanto namorada, filha, prima, me preocupo com meu companheiro, meu pai e meus primos sempre que não estão, e demoram de dar retorno, imagina para elas, que são mães?

Lembram do depoimento que Maju Coutinho deu em 2018, de não querer ter filhos, afirmando a posição dela sobre planejamento reprodutivo e da decisão individual e/ou com o parceiro de quando, como, onde, e se quer/querem ou não ter filhos? Eu lembro. E achei fantástico. E penso assim também. Só vou ter filhos quando e se eu quiser. Entretanto, confesso que também penso: ‘vou colocar um ser humano nesse mundo cão?’  A lógica da cultura de violência no Brasil é ceifar os corpos negros e não há como não considerar isso.100 grupos do movimento negro compõem a Coalizão Negra por Direitos,  autora do  manifesto Enquanto Houver Racismo, Não Haverá DemocraciaA Coalizão Negra por Direitos, que une mais de 100 organizações do movimento negro e movimento de mulheres negras, lançou neste mês o manifesto Enquanto Houver Racismo, Não Haverá Democracia. O documento destaca o seguinte trecho: “estamos vindo a público para denunciar as péssimas condições de vida da comunidade negra”, citação retirada do manifesto de fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, em julho de 1978. 

Quarenta e dois anos depois, seguimos afirmando “que estamos por nossa própria conta”. A pobreza no nosso país tem cor, é criminalizada e exterminada a partir de uma narrativa de “guerra às drogas” que justifica os tiroteios e as mortes. A cada 100 homicídios no país, 71 são de pessoas negras, segundo dados do Atlas da Violência de 2017 produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança.

Não é possível que uma criança de 11 anos, por exemplo, morra vítima de “bala perdida” em um tiroteio, envolvendo policiais, no Nordeste de Amaralina, em Salvador, e isso seja noticiado como uma fatalidade. Não é fatalidade. É necropolítica. Assim como, neste país, com a terceira maior população carcerária do mundo, a problemática do encarceramento de mais de 773 mil pessoas, e, ainda, em condições insalubres e desumanas, não seja pautado diariamente. E agora, com a covid-19, estão sem o direito de ver os(as) seus familiares. Grande parte, mães que muitas vezes são as únicas pessoas que seguem na luta pela garantia da liberdade dos seus.

Por fim, quero trazer aqui a memória de Luiza Mahin, africana, revolucionária, que lutou no passado contra a escravização da população negra sequestrada e ainda deu à luz a Luiz Gama, abolicionista negro, da justiça e das palavras. Desejo para todas as mulheres negras do Brasil a serenidade e a força Mahin, para que sigam firmes e fortes. Aqui deixo o meu carinho especial à Mirtes, que está sempre em meus pensamentos: sua luta não será em vão. 

Dedico, ainda, esse texto à todas mães que perderam os(as) filhos(as) por conta de um sistema forjado, desde antes de 1888, no genocídio dos nossos corpos, e também à minha amiga Isabela da Cruz, jovem, feminista negra, da Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha, advogada, mestranda em Direito, e agora mãe, pronta para trilhar no amor e na coragem.

Ubuntu.