'Tem paciente que quer se matar por causa do nariz', diz baiana que é 1ª cirurgiã plástica negra do país

Baiana, Tatiana Novais, discute as suas experiências de vida e trabalho

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 20 de setembro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Rafael Martins/Divulgação

Se quisesse, ela teria todos os recursos para realizar uma plástica no nariz, mas Tatiana Novais, 47, se recusa a apagar traços das suas origens e história familiar. Primeira cirurgiã plástica negra do Brasil, a baiana tem 30 anos na área da medicina e não descansa quando o tema é apontar o racismo na estética. 

Formada pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) no início da década de 1990, ela foi a primeira pessoa da família a ingressar na universidade. Neta de sapateiro e costureira, e filha de funcionário público, ela conta nesta entrevista como debates raciais só chegaram de forma mais tardia em sua vida, a partir do nascimento da filha. 

Há uma década de volta a Salvador, depois de viver alguns anos em São Paulo, ela teve nesse retorno o despertar para a valorização de características raciais. Idealizadora da 1ª Jornada de Saúde e Beleza Negra do país, ela agora também lidera os preparativos para o 1º Congresso Brasileiro de Saúde e Beleza Negra, previsto para acontecer em 2022.

As discussões se mostram essenciais num contexto em que o Brasil mantém o segundo lugar no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, em número de procedimentos estéticos cirúrgicos e não-cirúrgicos, segundo relatório de 2019 feito pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps).

Especialista em cirurgia craniomaxilofacial, a doutora discute as suas experiências de vida e trabalho enquanto mulher negra, questiona teorias caucasianas-europeias e traz, também, as angústias e alternativas para pacientes negros em consultórios estéticos.

CORREIO — Você estudou boa parte da vida em Salvador, uma cidade com cerca de 80% da população negra, segundo o IBGE. De onde vem a tua formação racial? 

Tatiana Novais — Meus pais são de família muito humilde. Meu avô era sapateiro, minha avó costureira. O meu pai entrou muito cedo no Banco do Brasil e, na década de 1960, esse ainda era um ambiente muito elitizado. Todo mundo no interior sabia que eu e meu irmão éramos filhos do gerente. A vida inteira eu tive uma proteção muito grande, então [o racismo] foi um tema que nunca nos tocou. Eu não entendia muito bem, não me via negra. 

Morei no interior, depois vim para Salvador, estudei no Colégio Anchieta. Eu era considerada a famosa “morena”, mas se tomo sol fico retinta. Naquela época, eu andava sempre retinta e, mesmo assim, era uma questão que não chegava na gente. Revendo minha vida, vejo que minha mãe, de forma inteligente, me protegeu disso.

Nas décadas de 1970 e 1980, as crianças não viviam de forma tão arrumada. Mesmo na faculdade, não era como hoje onde as meninas vão todas arrumadas. A minha mãe sempre me colocou arrumadíssima. Quando a gente é criado assim, a gente não percebe o racismo. 

Além da nova fase da humanidade que estamos vivendo, o que me despertou, aos 44 anos, foi o fato de ter tido uma filha muito branca. De repente, essa questão foi muito questionada e parabenizada, isso me gerou um incômodo tão grande! Diziam: “Nossa, como ela é branca! Parabéns, como é linda”. Foram falas que me agrediram muito porque parecia ter algo errado em ser negro, em parecer com o lado da minha família.

Associado a isso, a madrinha da minha filha, Sheila Arandas, publicitária, conversou comigo uma vez sobre as reclamações que eu tinha quanto a conseguir encontrar maquiagem para minha pele e cremes para o meu cabelo. Ela me disse: “Tati, tudo isso que você está falando hoje é chamado de black money. É um tema forte nos EUA e os negócios estão sendo obrigados a respeitar o poder do dinheiro de pessoas negras”.Eu nunca atendi tantos pacientes que me dissessem: “Eu quero alguém que me escute, que entenda a minha fala. Quero operar meu nariz, mas não quero ficar com nariz de branco”. Então, isso repercutiu na minha carreira médica, mas tudo começou ali, com o nascimento da minha filha e na conversa com essa amiga.O mercado estético é majoritariamente formado por profissionais brancos, o próprio marketing do segmento é quase sempre voltado para corpos brancos. O que você acredita que pessoas negras comumente não sabem sobre procedimentos estéticos? Quais dúvidas mais chegam ao seu consultório?

As pessoas estão buscando quem entenda o que elas estão falando. Por exemplo, eu quero que o profissional entenda que eu quero ficar maquiada e bonita na foto, sem aquela cara esbranquiçada, parecendo uma palhaça. Eu transfiro essa mesma lógica para a cirurgia plástica. As demandas pessoais são diferentes. 

Se uma paciente negra tem uma mama e deseja tirar um pouco de pele, eu preciso sugerir: “Será que não é melhor deixar o peito um tanto mais flácido, fazer isso aqui só por baixo, para evitar um risco de queloide?”. O paciente negro é muito mais suscetível a ter uma queloide. (Foto: Rafael Martins/Divulgação) Quase tudo na saúde do paciente negro é diferente. Uma médica disse uma coisa que ficou para sempre em mim: “Quando você atende um paciente negro, você está atendendo uma questão social e psicológica desse negro”. 

Sou uma médica que conversa, que pega nas pessoas. Tem profissionais que não tocam. Quando você não toca em um paciente negro, ele pode sair dali se perguntando se você não o tocou porque ele é negro. Será que o tratamento seria diferente com um branco?Em 2019, eu iniciei um levantamento de quantas médicas negras cirurgiãs plásticas nós temos no país. O Brasil tem, hoje, quase oito mil cirurgiões e, naquele ano, só achamos três profissionais negras. Até hoje, eu sigo procurando e nossa contagem está em apenas nove médicas, não fecham duas mãos. É inacreditável essa discrepância.Há uma confusão e mesmo um conflito hoje quanto às categorias profissionais que fazem procedimentos e cirurgias estéticas, quem pode ou não pode fazer o quê. Não têm sido raros os casos de quem desrespeita as regras dos conselhos e faz intervenções indevidas, às vezes a preços estranhamente baratos. Esses fenômenos afetam pessoas negras? De quais maneiras? 

Você não tem noção de como isso atinge. O conceito de beleza foi mudando com os anos. Sou fã de Leonardo da Vinci, ele foi o cara que, em sua época, estudou o que era belo e definiu que o belo é uma ordem numérica, então a gente importou esse conhecimento. Só que ele estabelece regras faciais caucasianas, como a de que a largura do nariz deve ir até o canto interno dos olhos. Os nossos estudos de estética são baseados nisso e isso só serve para brancos. Estes conceitos não atendem à quase totalidade da população negra.

Alguns profissionais usam da boa fé e se aproveitam dos pacientes com poder aquisitivo menor, que não têm condições ou acham que não tem condições de procurar cirurgião para fazer ou discutir o caso dela antes de fazer esses procedimentos. Tem riscos irreversíveis. Eu fiz cinco anos de especialização crânio-facial e, olha, a maioria dos cirurgiões, por exemplo, não operam nariz de tão complexo que é. 

Atendo pacientes que querem se matar por causa do nariz. Então, essas pacientes em desespero acham procedimentos baratos por aí, mas que vão deformar o nariz delas. A gente está vendo um número grande de deformidades. Não tem uma semana em que eu não receba pessoas que tiveram consequências de procedimentos errados.  (Foto: Rafael Martins/Divulgação) Em uma rinoplastia em pessoa negra é possível estabelecer uma fronteira de atuação entre o que é uma mudança estética e o que é eliminação de traços raciais? 

As coisas estão mudando e algumas já são diferentes. Antes, o lábio considerado bonito era o fininho e já não é mais. Agora, é o lábio gordo. Aquela face francesa, delicada, é que era bonita. Já, agora, prevalece uma face de mulher com traços masculinizados, forte, com mandíbula, queixo. Uma das coisas que ainda não mudou foi o nariz. 

O nariz fininho ainda é considerado bonito e isso é complexo para pessoas negras. Quem tem um nariz negróide e deseja fazer uma cirurgia, não tem que ter como meta um nariz de Xuxa. Muitas vezes, não combina com a face. Quando há indicação de cirurgia, a questão é deixá-lo mais harmônico, proporcional ao tamanho do rosto.

Aos meus pacientes eu dou sempre uma aula de anatomia. O nariz tem que ser avaliado de frente e de lado. A cartilagem de um paciente branco é dura, enquanto a pele é fina. Já o nariz negróide tem cartilagem mole, como um frango cozido, enquanto a pele é grossa. Então, eu mostro essas questões e digo: “Olha, se você quer mudar, é até esse limite. Seu rosto não combina muito com nariz fino”. 

Tento conversar para dar esse limite. Se a pessoa não entende o que estou falando, ela não pode ser minha paciente. Em algumas tentativas de afinar a ponta do nariz costumam acontecer casos de necrose, como foi o caso da influenciadora Sthe Matos. Não conheço a fundo o caso dela, mas é comum acontecer casos de necrose em narizes com uma ponta grossa, da qual retiram bastante tecido da pele e colocam uma cartilagem que não é feita para aquilo.

Sthe Matos é agora participante do reality A Fazenda 13. Lá, ela contou o quanto ainda é difícil lidar com as consequências da rinoplastia que fez, com os comentários das pessoas. Ela compartilha essas angústias para alertar quem pensa em fazer esse procedimento. Nós recebemos algumas dúvidas de leitores: É possível reverter aquele tipo de lesão ou é uma questão de tempo?

Em casos de cicatrizes, eu sou mais psicóloga do que médica. Cicatriz é um processo que tem que aguardar. Sthe Matos vive das redes sociais e eu fiquei encantada com o texto dela sobre o que aconteceu porque não é uma coisa fácil, mas me parece que ela está entendendo que precisa aguardar. Se uma cicatriz não está legal, é melhor esperar a resposta dela antes de fazer novas intervenções. Uma espera aí de, pelo menos, seis meses. Há toda uma ansiedade, mas esse tempo é fundamental. O segredo é: aguarde! Porque a cicatriz pode ter uma evolução boa e intervir nela pode ser pior.

Qual consciência os profissionais da estética precisam construir para não violar as histórias de pessoas negras? Como manter traços raciais e conciliar isso com sobreviver desse negócio?

A gente ganha com a história. É um prazer inenarrável eu operar uma paciente dos Estados Unidos e ela, depois, vem de lá trazendo a filha para operar comigo. Você tem que ter uma responsabilidade, pensando até economicamente. Uma vez, atendi a filha de uma pessoa super ativista que queria se operar. Era um direito da menina e realmente o nariz dela estava grande para o tamanho da face. Nós precisamos ter responsabilidade com o paciente. É preciso estudar a saúde e beleza negra.

O problema é que a consciência acerca da valorização da identidade racial não é comum a todos os profissionais de saúde. A prova disso está na realização indiscriminada de cortes das abas nasais, procedimento denominado alectomia, muitas vezes em clínicas e não em hospitais, impondo deformidades na respiração e até risco de morte a essas pessoas que, na maioria das vezes, não têm condição financeira para uma cirurgia plástica.

Hoje, qual o principal perfil das pessoas que te procuram? 

Aqui, a maioria dos pacientes de cirurgia plástica ainda não são negros, mas acho que atendo mais negros do que qualquer outro profissional na Bahia. Hoje, cerca de 65% das minhas pacientes são brancas. No geral, a maioria tem entre 35 a 50 anos e elas chegam maciçamente indicadas por outras pessoas. 

Tem algo que não perguntei que você acha legal falar?

Estamos organizando o 1º Congresso Brasileiro de Saúde e Beleza Negra, previsto para acontecer em novembro de 2022. O local não poderia ser outro que não a Bahia. Na nossa última experiência, um evento menor, em 2019, com a 1ª Jornada da Saúde e Beleza Negra, trouxemos dermatologistas falando de melasma, ginecologistas tratando de estética genital, olfalmologistas falando de doenças diferentes em negros, tatuagem e depilação em pele negra, alopécia por causa da colocação de tranças, psicóloga tratando de casamentos interraciais e as questões que isso traz para as escolas. São muitas especialidades envolvidas e nós temos que sentar juntos para discutir.