Terapia preta: Dá para conversar sobre racismo com um terapeuta branco?

Entenda como funciona essa perspectiva e porque tem crescido a procura por terapia e psicoterapia afrocentrada e antirracista

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  • Priscila Natividade

Publicado em 20 de novembro de 2021 às 10:31

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Paula Fróes/ CORREIO

Imagine um homem negro abordado com violência pela polícia ou acompanhado por um segurança ao entrar em uma loja. Uma mulher negra que é diminuída por conta da cor da pele e pelo seu cabelo crespo. Nas últimas semanas, a declaração do ator e cantor Seu Jorge, que vive o líder revolucionário Carlos Mariguella no cinema (Mariguella, 2019), chamou atenção para uma terapia que considere uma perspectiva afrocentrada para o cuidado de si mesmo:  “Sou rústico, achava que terapia de negão era candomblé. Tenho minhas questões como homem negro de 50 anos, não dá para conversar com um terapeuta que não seja negro”. 

Existem coisas que pertencer ao mesmo grupo social ajudam sim, no processo psicoterapêutico, como pontua o psicólogo e mestre em Psicologia Social, Valter da Mata. Ele também é especialista em Psicologia e Relações Étnico-Raciais e membro do Grupo de Psicologia e Relações Raciais do Conselho Regional de Psicologia da Bahia (CRP – 3ª Região). 

“Pessoas do mesmo endogrupo tendem a passar pelas mesmas agruras, facilitando o entendimento da subjetividade do cliente. A procura pela perspectiva afrocentrada quadruplicou. Hoje existem até redes de psicólogos que atendem com esse foco. A principal diferença para uma terapia comum está na escuta ativa e atenta às questões raciais. É importante ter conhecimento das heranças ancestrais, modos de subjetivação e expressividade de valores dessa população e, sobretudo, agir sem julgamentos etnocêntricos”, ressalta. 

Quem assistiu a quarta temporada de This Is Us - uma das séries mais famosas do momento (Prime Video/ Star+) -  viu também a terapia afrocentrada e antirracista ganhar destaque. Quase todos os episódios mais recentes percorrem a saga de Randall Pearson, um de seus protagonistas, que recorre a essa proposta para resolver suas angústias de criança preta adotada por uma família branca.  'O racismo é um vetor de sofrimento psicológico', afirma Valter da Mata (Foto: Acervo Pessoal) Valter da Mata lista alguns fatores que contribuem para o fenômeno do crescimento da procura: “Temos aí razões como a democratização da psicologia, com a sua inserção nas políticas de assistência social. Esse contexto se soma a uma maior conscientização da população brasileira de que nós vivemos num país extremamente racista, travestido de democracia racial”.  

Fortalecer a mente, autoestima e o autocuidado negro passa por sair da armadilha da história única. “O racismo é um vetor de sofrimento psicológico. É necessário olhar para trás, tirar o véu, para entender que ele existe e como ele opera”, completa da Mata. 

ALGO EM COMUM

“A terapia afrocentrada pensa, reflete e prioriza a valorização dos psicólogos pretos. Muda o fato de que somos afetados pelo sistema, vivências e entendemos quem chega até o atendimento. Entender sobre o que os nossos sentem nos aproxima e gera mais confiança, o que é bom para o processo terapêutico com mais desfechos favoráveis nos atendimentos e um menor percentual de abandono no processo. O corpo negro e a auto-imagem são algumas das angústias compartilhadas sendo o racismo sem dúvidas, infelizmente um atravessador comum em nossa existência. Ter algo em comum, faz com que esse atravessamento nos aproxime e contribua dentro do processo de escuta”.  (Foto: Acervo Pessoal) Ianca Bitencourt, psicóloga (@construindouma.psi)  Trabalha na clínica com relacionamentos, representatividade estética, étnico raciais e de gênero. Pesquisa em grupos e estuda sobre a saúde da população negra na abordagem da Gestalt-Terapia.

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AFROPERSPECTIVAS

“Eu diria que existe terapia em que os saberes são localizados e agenciados em afroperspectivas, que bebemos de fontes com valores civilizatórios africanos, o que nos oferece uma outra cosmovisão de homem e de mundo diferente de referenciais eurocêntricos. Não dá para se conectar com um profissional que se encontra com a subjetividade colonizada. Não é sobre não ser racista, mas ser anti-racista nas suas práticas cotidianas, é ser um profissional que compreende o quanto é problemática a experiência existencial em uma sociedade anti-negro, que tem como parâmetro o corpo branco e psiquismo ocidental. É uma busca constante de reintegrar as vidas negras destroçadas pelo racismo de forma integral. Então, por isso a urgência de agenciar nossas escolhas em afroperspectivas”.  (Foto: Acervo Pessoal) Lizandra Aguiar, psicóloga afrocentrada (@Iyami_terapias)  É terapeuta Integrativa sistêmica e matrigestora da rede Iyami Terapias    

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ACESSO

“O que que cresceu foi a oportunidade de acesso ao serviço de psicoterapia. Isso se deu, pelo acesso mais democrático de pessoas negras às universidades, em especial na graduação de Psicologia. Com mais psicólogas não-brancas tem sido possível olhar para a ciência de maneira menos elitizada, a psicoterapia tornou-se um serviço para todos. As pessoas negras passam a se autorizar a procurar uma profissional que as auxiliem na elaboração de suas dores e impedimentos existenciais e tendem a se sentirem mais seguros com psicoterapeutas negros, pois a possibilidade de ver as suas vivências serem desconsideradas é consideravelmente menor. A minha escolha por atuar dentro da perspectiva afrocentrada surge acima de tudo, porque me reconheço posicionada como uma mulher negra e é desse lugar que me enxergo no mundo e me relaciono com ele, portanto, para mim, seria impossível, fazer diferente”.   (Foto: Acervo Pessoal) Lígia Santos Costa, psicoterapeuta afrocentrada (@lisancosta)  É psicóloga Gestalt-terapeuta e doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo e pesquisadora em Relações Raciais e Feminismo Negro.  

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SE SENTIR E SE ENTENDER COMO PRETO

“A procura vem da população que se sente/entende como preta. Com as políticas e o movimento social em prol da aceitação, fortalecimento e igualdade dos seres humanos, as pessoas têm compreendido as demandas especificas que cada grupo tem e buscado uma escuta/ajuda que compreenda essas especificidades, por isso a demanda tem aumentado. Já fui confundida com empregada doméstica, diminuída ao fazer algo errado, simplesmente devido a cor da minha pele. As transformações são gigantescas e muito notáveis de pessoas que atendo que tinham dificuldade de falar, de se colocar e hoje conseguem se expressar e estão, inclusive, em posição de destaque. Que desconstruíram crenças limitantes que não podiam ou não conseguiriam desenvolver certa atividade e agora  se colocam e ocupam esses espaços de forma segura. Mulheres negras que se consideravam feias e sofriam por se sentirem não aceitas e estão mais que satisfeitas, felizes e seguras consigo mesmas”.  (Foto: Acervo Pessoal) Susy Matos, psicologa (@susy_rocha)  É mestre em Ciências da Saúde e coordenadora do curso de psicologia da Uniruy  

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ANCESTRALIDADE

“Sistematizei a clínica NagôDengo, pois não tinha conhecimento de terapias afrocentradas e que olhassem o ser negro dentro de uma perspectiva africana que acolhe a nossa espiritualidade e ancestralidade, além da dimensão emocional. Nenhuma perspectiva de terapia ocidental abordava isso. Quando comecei a estudar psicanálise tive essa inquietude e busquei, nas minhas referências negras e do candomblé, trazer conhecimentos que dessem conta dessas lacunas. Assim há forte referência dos saberes africanos, foco nas questões étnicas-raciais e o acolhimento da ancestralidade e espiritualidade como parte do processo. Isso é fundamental para pessoas negras de ascendência africana. Não foram poucos os casos de acolhidos negros que eu tive que falaram de racismo ou de uma escuta não acolhedora que tiveram de um terapeuta branco. Hoje faço acompanhamento de 22 pessoas. Tenho acolhidos no país inteiro. O mais importante para as pessoas pretas é entender que nós não somos seres da solidão. Somos seres da comunidade e a nossa comunidade se constitui da relação com outras pessoas pretas”.   (Foto: Acervo Pessoal) Omoloji Àgbára Dúdú (@nagodengo)  Criador da NagôDengo Cuidados Afrikana. Participou como convidado do rapper Emicida do projeto AmarElo, para falar da saúde emocional da população negra.  É pesquisador de práticas ancestrais africanas de cuidados integrais do ser e fundador da Rede Oborós  de acolhimento e intercuidado de homens pretos que amam homens pretos.

TERAPIA X PSICOTERAPIA Psicoterapia é um tratamento específico para as questões de saúde mental. Já a terapia se refere a diferentes tratamentos em inúmeras áreas da saúde. O psicólogo deve ter concluído o curso superior em Psicologia e para atuar clinicamente, um registro no Conselho de Psicologia (CRP). O terapeuta, no entanto, basta fazer uma formação ou, muitas vezes, apenas ter um estudo em determinada área para prestar esse serviço.