Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.
Da Redação
Publicado em 10 de maio de 2020 às 13:18
- Atualizado há um ano
Dizem que sou "workaholic". Gente que trabalha demais, sabe? E, para falar a verdade, eu sou mesmo. Não que isso seja correto. Mas eu amo o que eu faço: me comunicar, escrever, articular. Herdei o dom de fazer mil coisas da minha mãe: Joseide, 65. Uma mulher generosa que leva esse nome diferente. Mistura de meu avô, seu José, com a minha avó, dona Ataíde. Conhecida como Jô ou Jota, mainha é enfermeira e atua como técnica de enfermagem de um hospital público. E é inspirada nela e nas mães profissionais de saúde, sobretudo as técnicas e auxiliares, no front da luta pelas nossas vidas, que escrevo hoje.
Protetora, defensora e inspiração para as cinco irmãs que seguiram seus passos e entraram na área da saúde, dona Jota, é considerada a memória viva de uma das várias famílias Santos, do bairro da Liberdade. Na nossa, ela é a que sabe mais. Desde como a sua avó (minha bisavó) fugiu da aldeia indígena para se casar com o seu avô (meu bisavô), até os nomes dos nossos parentes (vivos e/ou ancestrais) das nossas raízes lá para os municípios de Cachoeira, Recôncavo Baiano, e Itaberaba, em Piemonte do Paraguaçu. Porém, nunca saberá tudo, pois no caminho das recordações encontramos a escravidão no Brasil e as cinzas deixadas por Ruy Barbosa e os seus, aos queimarem os registros desta população. E como é importante falarmos no passado, não é mesmo? Porque a população negra brasileira historicamente foi destituída do direito de saber a sua origem. Quando os sobrenomes dos senhores eram colocados nos negros e negras trazidos à força, perdia-se ali uma das coisas mais importantes da nossa existência: a memória. E esse processo de apagamento e silenciamento nos impacta até os dias de hoje. Na próxima quarta-feira, 13 de maio, completa-se 132 anos da abolição inconclusa. No amanhecer seguinte, como nos lembra Lazzo Matumbi na música 14 de maio, "não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir". E mesmo com esse pacto branco, a população negra sobreviveu. E seguirá a sobreviver e a lutar contra uma sociedade forjada no racismo. É como Conceição Evaristo reforça no livro Olhos D'água: combinamos de não morrer.
Na busca de cuidar e ser cuidada, voltei para a casa dos meus pais. Pessoas estas que tenho o privilégio de conversar e rir com certa frequência. Assim como, franzir a testa, respirar fundo e refletir. Recentemente, com mainha, fizemos uma reflexão sobre o avanço da pandemia da covid-19 no mundo, mas em especial no Brasil e em países do contexto da diáspora negra e do continente africano, e como isso só nos evidencia o quanto ainda não houve reparação histórica. Os impactos são gigantescos.
Enquanto o circo segue armado entre Moristas e Bolsonaristas e o pum do palhaço da Regina Duarte está fedendo a enxofre, as situações calamitosas vão desde o medo do desemprego ao mercado informal levando os/as empobrecidos/as às ruas para ganhar o sustento arriscando suas vidas; ao super encarceramento e as condições subumanas; a tensão ocasionada nas comunidades/favelas acentuando assim os casos de violência; a falta de saneamento básico e distribuição de água, ambos direitos, para que as pessoas possam se prevenir do vírus; e, também, na exposição das ditas profissões essenciais (transporte, saúde, limpeza pública, etc) sem proteção, ou insuficiente e/ou inadequada.
Pessoas estas que podem ser uma mãe que trabalha como camelô, não conseguiu o auxílio emergencial e está trabalhando para alimentar os filhos; uma mãe que quer ver o/a filho/a, mas não pode porque ele está preso e proibido de ver os familiares por tempo indeterminado por causa da pandemia (acesse a campanha Liberdade é uma Questão de Saúde Pública); uma mãe sendo agredida pelo seu companheiro na frente de crianças em casa; ou mães de um bairro sem poder tomar banho no dia especial pela falta de água.
Uma das coisas que me orgulho em dizer que aprendi com minha mãe, e estendo aqui às minhas tias, pois sou de uma família matriarcal, foi a luta pela sobrevivência. E ao olhar para as muitas iniquidades existentes no Brasil, antes mesmo da covid-19, pergunto: que mundo queremos pós-pandemia?Eu, particularmente, quero um mundo em que nunca mais voltemos ao que era antes, de naturalizar coisas inaceitáveis. Que as lutas passadas, enfrentadas pela minha avó, por minha mãe, e por mim, não ultrapassem o tempo e afetem minhas filhas ou filhos, netos/as. E que, por fim, minhas gerações futuras saibam quem foi Ataíde, costureira e passadeira, que criou dez filhos que se tornaram advogado, assistente social, bióloga, enfermeira, músico e professoras, e Joseide Maria, enfermeira e professora de filosofia que mudou o rumo de vida das irmãs, consequentemente, ao ser a primeira da família ao ingressar na área da saúde. Ela é o retrato das profissionais de saúde que fazem o trabalho de base e fundamental do Brasil: as mulheres negras!
Mesmo que as revistas não publiquem na capa, mesmo que a “TV não mostre, aqui vamos nós!”
Heroínas ontem. Heroínas hoje. Heroínas sempre!
Obrigada mãe, vó (in memorian) e tias.
Ubuntu