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Da Redação
Publicado em 23 de junho de 2019 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
A noite de São João é a noite mais brasileira. Bonito isso, né? Mas, não é meu, não. É de Luiz Gonzaga. Por mais que a frase seja de uma beleza simples e muito autêntica, abrir um texto de uma coluna chamada “Baianidades” com a citação de um pernambucano, em qualquer outra época da vida, poderia ser considerado um crime imperdoável. No mês de junho, no entanto, a licença poética infla como um balão multicor.>
O baiano está pra a cultura do Nordeste assim como o brasileiro está para os países da América Latina. Em ambos os casos, mantemos um leve ar de superioridade e um esnobismo típico de um meio-irmão criado num ambiente estribado diante de uma ruma de parentes que, supomos (e só supomos), são mais humildes ou mesmo completamente desvalidos.>
Apesar destas leves críticas iniciais, não pretendo entrar nessa seara regional. Não quero melindrar você, dileto leitor baiano, cujo apoio julgo importante. Quero falar exclusivamente do São João e mais especificamente da nossa melhor tradição neste período: a fina arte de pular fogueiras.Pular fogueira Pois, sim. Se é verdade que o baiano é um bom comedor de água também na modalidade licor, não dispensa nem os últimos amendoins da bacia e sabe o ponto exato para deixar a canjica extremamente cremosa, não se pode negar que nossa mais proeminente destreza junina seja a capacidade de saltar sobre brasas incandescentes antes que as primeiras chamas lambam partes sensíveis do nosso corpo.>
Poderia, aqui, listar inúmeros casos de ilustres e anônimos baianos que souberam pular a fogueira antes que o caldo de milho entornasse. A começar pela nossa gênese, quando a Baía de Todos os Santos ainda se chamava kirimurê e o menino Diogo Álvares Correia por aqui naufragou.>
Prestes a ser devorado por índios tupinambás, após ver sua embarcação colidir nas pedras da praia do Rio Vermelho, Diogo disparou um tiro pra cima que mudou o curso da história. A partir dali foi batizado de Caramuru (“o filho do trovão”), acolhido pelos nativos e, de quebra, com o estampido surdo da garrucha, parece ter despertado um alerta de perigo que ressoa até hoje em todos nós, baianos, ao primeiro indício de ameaça real.>
Afinal, que outro povo tem tantas expressões idiomáticas para expressar riscos iminentes quanto nós? “Não vá que é barril”. “Ali é esparro”. “Vão lhe pegar na cocó”. “Não entre em laranjada”. “É esparrela, parceiro”. “Se saia daquele B.O.”.>
Tantas expressões indicam experiências anteriormente vividas (ou melhor, evitadas). Tal qual o “sentido aranha” do herói dos quadrinhos, os baianos parecem ouvir aquele tiro disparado ao léu e ao céu sempre que alguma coisa parece fora de ordem.>
Embora a alusão direta seja a um aracnídeo, a melhor expressão para indicar esse poder premonitório vem de um mamífero (não, não é um roedor). Rua escura na subida da Lapa. Soa o disparo de Caramuru. “Quem sobe ali é o coelho...”.>
Tudo bem que esta versão do tiro pra cima dado pelo mais famoso náufrago deste litoral é, hoje, bastante contestada pelos historiadores, mas eu exagerei no licor e quero acreditar nela mesmo assim. Afinal de contas, já imaginando que este texto venha a ser bastante criticado por misturar na mesma salada São João, Caramuru, Luiz Gonzaga e Homem-Aranha (alô, Jorge Vercillo) me antecipei às críticas deixando a entender que tudo aqui foi escrito sob forte efeito de licor junino (de cajá, diga-se). >
É claro que eu iria pular essa fogueira...>