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Paulo Leandro
Publicado em 7 de fevereiro de 2019 às 13:00
- Atualizado há 2 anos
As ocorrências policiais entre torcedores, em Salvador, raramente excediam de dez, segundo afirmavam os comandantes do policiamento, conforme se conhece do trabalho A Rivalidade Civilizada, dos jornalistas Raimundo Cerqueira e Roberto Perazzo.>
Eram ocorrências por bebedeira: torcedores vestidos nas cores de seu time tomavam uns catiripapos ao invadir o território da torcida adversária. Ou cambistas eram flagrados vendendo bilhetes e não liberavam a graninha da propina. Dez ocorrências em média.>
Coincidentemente, os números e o perfil da torcida mudaram, na virada do século, logo após a decisão do campeonato de 1999 cuja final seria no Barradão, mas, por liminar obtida no Judiciário, foi transferida para a Fonte Nova, por alegada falta de segurança.>
Seria leviano estabelecer relação de causa e efeito, mas os ânimos acirradíssimos e a percepção do vácuo de poder confiável para organizar o futebol não são aspectos que devam ser desprezados nesta súbita alteração da paz para a guerra. A torcida mudou.>
Os grupos de torcedores, que nasceram com o nome de torcidas uniformizadas, passaram a utilizar-se de símbolos bélicos e mesmo a poética Bamor aderiu aos convites para confrontos que agravaram-se com a marcação de duelos pela internet com a TUI.>
As torcidas uniformizadas são de tal forma importantes para o espetáculo que nossos cinegrafistas necessitam de suas coerografias e coloridos para embelezar suas imagens. Ao mesmo tempo da arte, prosperou um ódio pelo outro, típico dos piores fascismos.>
A coisa se complica quando se sabe que só nos reconhecemos como sujeito na alteridade. Rompendo a ideia do sujeito com base no outro, perdemos a identidade. Quem sou eu? Alguém que se contrapõe ao outro. Se negamos o outro, como ser eu?>
É no tricolor que o rubro-negro se conhece como tal e o contrário também se verifica. No momento de obscurantismo em que tentamos construir nosso eu com base em abstrações sem vida, reacendemos as bases instintivas de nossa natureza violenta.>
Constatamos esta violência originária no mundo cotidiano além do futebol. Se temos uma religião e entendemos que nosso deus é a única salvação, nos tornamos violentos porque não há o outro a quem contrapor e até admirar. Assim, também na política.>
Sem o outro não há eu, e sem o eu a violência toma conta porque é a educação e a civilidade que produzem a sensação de um perfil identitário próprio que só se pode erguer a partir do contraste com o outro. O divergente é condição para conviver na paz!>
Há também um contexto belicoso construído pelos agentes midiáticos massivos que abandonaram o discurso desportivo: não trapacear, respeitar o adversário, parabenizar os vencedores, considerar a disciplina um valor maior que a vitória, entre outros.>
A narrativa educativa que os meios de comunicação utilizavam foi substituída, com o profissionalismo mercantil crescente, por um duelo que supervaloriza a violência na linguagem. Os massacres nascem na oralidade, embora esta sirva também como catarse.>
Dá mais audiência a pirraça mútua, ao passo que o ideário moral entedia e não ajuda nas vendas e atração de anunciantes. O mal-estar é prender nossos bichos violentos que somos, dentro de nossa aparência de civilizados. Uma violência que ajuda a vender.>
A educação pode ensinar a soltar estas feras: no gol, pulamos juntos como loucos, abraçando quem nunca vimos antes; cantamos nossos hinos com entusiasmo grego, e assim, damos vazão a nossa energia ancestral acumulada desde as primeiras cavernas.>
Um outro aspecto que se pode pensar, neste brevíssimo artigo, é o abandono do Leviathan, que desistiu de garantir a segurança pública, conforme era previsto por Thomas Hobbes, no clássico publicado em 1651 que mudou a história do mundo.>
A iniciativa privada que controla as arenas poderia ocupar esta lacuna, mas reduziria seus lucros. Assim, a torcida única surge como aparente solução para evitar investimentos e livrar o Estado da pecha de incompetente para cumprir seu papel.>
O cidadão moderno sacrificou sua liberdade em troca da proteção do Estado. E o que temos hoje é um Estado que se abstém de cuidar da função para a qual foi criado. O Judiciário, aparentemente diligente, assinou nosso atestado de óbito, a torcida única.>
Com o incentivo ao armamento, sonho de libertação do ignorante brasileiro, a tendência é aumentar o número de duelos entre os jovens de famílias desestruturadas. Agarram-se no amor ao clube e aos psicoativos como última tábua antes do naufrágio definitivo.>
Sem incentivar a rivalidade, a mídia não vende; o professor é novo bandido do sistema, desacreditado e mal pago; as famílias praticamente já não existem e as novas tecnologias de celulares espalham o ódio; a polícia e os donos do futebol se omitem.>
O resultado desta mistura será a falência a curto prazo do futebol como o conhecíamos, pois não haverá chance de frequentar os estádios nem sair as ruas, como se verificou no caso do torcedor espancado por estar vestido na camisa de seu clube.>
Mas, que mal há, se causamos uma morte aqui outra ali, se eliminamos a catarse que representava o futebol nos estádios? Aumentar o clima de guerra vai dar mais clientes ao canal fechado, pois os cidadãos de bem pagam caro para ver seu joguinho em paz.>
Paulo Leandro é jornalista e prof. dr. em Cultura e Sociedade>
Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores>