UFRB e indústria química disputam terreno doado por prefeitura em Santo Amaro

Câmara de Santo Amaro vota hoje projeto de lei que entrega terreno na cidade para paulistas, mesmo depois de tê-lo doado à universidade

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  • Adele Robichez

Publicado em 27 de julho de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO

Universidade ou indústria? Alunos, professores e técnicos circulando às margens do Rio Subaé ou operários e fumaça da fabricação de lubrificantes, selantes e adesivos automotivos? A decisão sobre o que será feito com o terreno onde, por 30 anos, funcionou a Fundição de Aço Tarzan, em Santo Amaro, será tomada nesta segunda-feira (27) por 15 pessoas: os vereadores da cidade do Recôncavo baiano, que parece não se livrar da sina de conviver com o risco da contaminação. O cantor Caetano Veloso, filho da terra, cobrou que os vereadores não permitam a instalação da fábrica no local.

A votação do projeto de lei que entrega o terreno, dentro do perímetro urbano, à empresa Orbi Química gera discussão na cidade e fora dela, por razões não só econômicas ou ambientais. É que o mesmo terreno onde a Fundição Tarzan funcionou de 1950 a 1981, como a primeira siderúrgica do Nordeste, foi doado em 2005 para a construção do campus de Santo Amaro à Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). O atual projeto quer tirar a posse da UFRB e entregar o terreno à Orbi, com sede em São Paulo.

Para aprovação do projeto de lei, são necessários dois terços dos votos do Legislativo Municipal - ou seja, dez. O CORREIO apurou que nove vereadores são a favor do projeto. Na nota de esclarecimento sobre o imbróglio, a Prefeitura de Santo Amaro diz que o terreno voltou legalmente à posse do município, uma vez que a UFRB não cumpriu o compromisso de entregar o campus de Santo Amaro até 2016, nem pediu a revalidação da doação.“Nesse contexto, a estrutura foi destinada a outro viés de desenvolvimento local, voltada para a geração de empregos e renda ao município, através de instalação de uma fábrica”, diz a nota da prefeitura.Em nota, o reitor da UFRB, Fábio Josué Souza dos Santos, disse ter sido supreendido com a notícia na página da prefeitura no Facebook de que uma audiência pública teria sido realizada no dia 22. “É estranho que em nenhum momento a Universidade tenha sido convidada para algum diálogo ou sequer informada sobre as pretensões da Prefeitura em relação ao local”, diz a nota.

Na última quinta-feira (24), o diretor do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da UFRB (Cecult/Santo Amaro), Danillo Barata, foi até a Câmara de Vereadores e protocolou um ofício com informações sobre o projeto para o campus. Hoje, as aulas na cidade acontecem num antigo colégio. 

Purificar o Subaé Filho de Santo Amaro, o cantor Caetano Veloso saiu em defesa da manutenção do terreno para a universidade e cobrou dos vereadores que não permitam a instalação da indústria no perímetro urbano, sob o risco de contaminar o Subaé.“Eu peço aos vereadores de Santo Amaro, minha cidade, que se lembrem que a Câmara de Santo Amaro é pioneira na independência do Brasil. Que se respeitem, que pensem profundamente nos problemas que Santo Amaro já vem enfrentando com muitas dificuldades há muitos anos por conta de questões ambientais causadas por aquela fábrica de chumbo”, disse Caetano.Ele se refere à Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac), que deixou toneladas de escória de chumbo e cádmio na cidade (leia ao lado): “Essa nova [fábrica], defronte do Rio Subaé, é uma ameaça que nós não devemos admitir”, completou, em vídeo postado nas redes sociais.

Sobre a demora na implantação do campus, Caetano defendeu: “É uma perda inestimável para a UFRB. Mesmo que haja atrasos, houve mudanças na política brasileira”, diz.

O antropólogo santamarense Wellington Pereira, membro do Coletivo Angela Davis UFRB, espera mais discussão. “Acredito que toda e qualquer forma de gerar emprego para a população é justa e salutar. Porém, acredito que o tema tem que ser mais debatido. O terreno previamente tinha uma destinação, que é abrigar o campus da UFRB”, diz. Fundição de Aço Tarzan foi a primeira siderúrgica do Nordeste e atuou em Santo Amaro de 1950 a 1981 (Foto: Reprodução) Campus Santo Amaro O CORREIO teve acesso a dois documentos que tratam da doação do terreno da Fundição Tarzan para a construção do campus da UFRB em Santo Amaro. O primeiro é a Lei nº 1583/2005, que doa o terreno de 39 mil metros quadrados à Universidade Federal da Bahia (Ufba) para a implantação da UFRB na cidade.

Nesta lei, sancionada em 11 de novembro de 2005 pelo então prefeito, João Roberto Pereira de Melo, já constava a obrigatoriedade da construção do campus universitário - do contrário, o terreno voltaria ao dono de origem.

Um outro documento, de 3 de setembro de 2012, faz uma alteração na lei anterior, dizendo que cabia à UFRB - e não à Ufba - fazer a implantação no campus, novamente num prazo de quatro anos.

O argumento do município é que a UFRB não cumpriu o combinado e que o terreno pertence à prefeitura. Já o diretor do Cecult/Santo Amaro, Danillo Barata, o terreno continua pertencendo à UFRB. Ele diz, inclusive, que a universidade paga os tributos relativos ao terreno.

Em nota divulgada em seu site, o Cecult informa que a implantação do campus de Santo Amaro é fruto de uma demanda histórica da região e que os estudos preliminares já foram realizados pelo Iphan. Agora, o projeto aguarda liberação de recursos. Hoje, o Cecult abriga seis cursos de graduação e quatro de pós-graduação, funcionando provisoriamente no antigo Colégio Pedro Lago.

Para Barata, “a prefeitura exige um imediatismo que não é possível”. Segundo ele, sem o terreno, a continuidade da universidade na cidade fica comprometida.“É natural que tenha um campus para a universidade e não uma escola pública”, diz Danillo Barata. O público da UFRB em Santo Amaro hoje é 1,5 mil pessoas.Líder do governo na Câmara, o vereador Hélio Maury (PRTB) disse que “há o desejo da cidade em relação à instalação do campus, mas, em 15 anos, o terreno continua sem [construção]”. Em nota, a prefeitura disse que “reitera seu compromisso com a manutenção do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas em Santo Amaro”.

Um ex-assessor da prefeitura ouvido pelo CORREIO explicou que o Plano de Desenvolvimento Urbano Municipal, assinado no ano passado pelo prefeito Flaviano Rohrs (DEM) não permite a instalação de indústrias dentro do município. O mapa da cidade, porém, mostra o terreno já dentro da zona urbana.

O CORREIO procurou a Orbi Química, mas não encontrou nenhum responsável pela empresa nos telefones disponibilizados em seu site. Nas redes sociais, a empresa diz possuir o “selo verde”, fornecido pelo Instituto Chico Mendes para empresas que comprovam por meio de pesquisas que seus produtos e ciclos de vida são amigáveis para o planeta e as vidas que nele habitam. Nas últimas postagens, comentários repudiam a instalação em Santo Amaro. Mapa mostra que terreno onde a prefeitura prentende liberar instalação de fábrica fica dentro do perímetro urbano da cidade (Imagem: Google Earth) Petição tenta barrar fábrica no perímetro urbano Quem vive em Santo Amaro vem se mobilizando contra a instalação da fábrica no terreno da Fundição Tarzan. No dia 23 de julho, uma petição pública foi criada a fim de impedir a instalação da fábrica no Centro de Santo Amaro. A meta da petição era alcançar 2,5 mil assinaturas - mais de 1,8 mil tinham sido alcançadas até a noite de ontem.

No texto consta que a lei Orgânica do Município e a Lei complementar nº3/2018 fazem exigências para a futura instalação de fábricas na cidade: “conservar os remanescentes florestais na margem de curso d’água ou grota, manter a área do terreno destinada a área verde na implantação de edificações industriais e de serviços gerais e atender aos critérios básicos de uso e ocupação do solo”. Lei de 2012 impediria a instalação por conta da distância do leito do Rio Subaé, que margeia o terreno.

“Só não tem manifestação na rua por conta da pandemia”, afirma Carlos Dias, morador da cidade. Ele acredita, inclusive, que a votação acontece nesse momento justamente porque a pandemia de covid-19 impede grandes movimentações populares. Em Santo Amaro foram registrados 528 casos de coronavírus e seis óbitos.

O padre da de Santo Amaro, Raimundo Mário de Santana, também se posicionou contra a instalação da fábrica na missa de ontem.“A gente sabe o que uma empresa de produtos químicos faz na vida de uma cidade, nós já tivemos essa experiência com a fábrica de chumbo”, afirmou o padre.Para Carlos, o problema não é necessariamente a instalação da fábrica, mas a localização. “Não somos contra a instalação da indústria, e sim contra a instalação no centro da cidade, perto do rio, tomando a área da universidade”, diz Carlos.

O assunto tambem foi parar no Twitter. Uma das postagens foi da santamarense Layla Calmon, 20, estudante de Letras. “É um absurdo o prefeito de Santo Amaro querendo trazer uma indústria de fundo de quintal pra ser construída num terreno que foi doado pra UFRB construir um campus na cidade. Além de ser um prejuízo enorme pro meio ambiente (local próximo ao rio), é um prejuízo pra educação”, escreveu. Alunos fizeram a campanha #ficacecult.

Série do CORREIO mostrou estrago do chumbo Santo Amaro já carrega sua própria história de contaminação com a atividade industrial na cidade. Em setembro do ano passado, o CORREIO mostrou em uma série de reportagens o rastro de contaminação deixado pela Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac), mesmo após encerrar as atividades em 1993: 500 mil toneladas de escória de chumbo e cádmio no solo da cidade tornaram Santo Amaro o município mais contaminado pelos metais no mundo.

A fábrica, que hoje se chama Plumbum e atua no Paraná, precisa pagar 10% de seu faturamento bruto ao tratamento das mais de 3 mil vítimas de contaminação na cidade, segundo uma decisão judicial de 2002. Desde que uma obra da prefeitura começou a mexer no solo, no entanto, o que estava enterrrado agora expõe à contaminação toda a população de cerca de 60 mil pessoas na cidade. Uma série de doenças acometem os contaminados, como neuropatia periférica, dores e manchas no corpo, amputações. Outros muitos morreram envenenados pelo chumbo sem receberem indenização. Toneladas de escória de chumbo no solo de Santo Amaro foram desenterradas com obras na cidade; ex-funcionários de indústria morreram (Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO) É por isso que a instalação de outra indústria na cidade desperta a reação de santamarenses.“A empresa diz que não polui, mas vai ficar do lado do rio Subaé, que já é praticamente morto por consequência da antiga empresa fabricante de chumbo. Ali tem uma área de manguezal. Pescadores e marisqueiras vivem da pesca, quilombolas vivem ali”, afirma o morador Carlos Dias.Para ele, a geração de empregos na cidade será precarizada.  “A população de Santo Amaro não fará parte do time de engenheiros e técnicos porque não tem gente qualificada e não acredito que a empresa irá qualificar ninguém”, completa.

Contrária à instalação da fábrica, Manu Ogunjá, aluna da UFRB em Santo Amaro, também lembra da escória do chumbo. “Primeiro, nosso santinho é vítima da escória, das sequelas eternas que serão tragédias para a ancestralidade”, diz.

A escritora Mabel Veloso contou que a preocupação tomou conta da cidade:“Espalharam rapidamente a notícia em Santo Amaro, muitas pessoas ligaram. Já teve o problema do chumbo, já tem a agonia do vírus, a população está muito preocupada”, diz Mabel.  *Com supervisão da chefe de reportagem Perla Ribeiro e colaboração de Priscila Natividade