Um cara decente

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  • Paulo Sales

Publicado em 7 de setembro de 2020 às 05:00

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Em Conversa Sobre o Tempo, livro que reúne conversas suas com Zuenir Ventura e Arthur Dapieve, Luis Fernando Verissimo descreve assim a morte do pai, Érico: “Para mim foi terrível porque vi o meu pai morrendo. (…) Ele estava de pé no escritório e sentiu uma tontura. ‘Tô ficando tonto’, disse. Aí ele se sentou numa cadeira, e eu vi os olhos dele ficarem vazios. O olhar dele ficou vazio. Ele tinha morrido. Mas eu pensei que ainda desse para fazer alguma coisa, saí de carro correndo para a casa de um cardiologista que morava ali perto. Não encontrei o cardiologista, voltei pra casa e ele já estava morto. Foi terrível viver com essa imagem de ver o pai morrer, ver a morte tomar conta de uma pessoa. Ficar com os olhos vazios assim.”

Não pude ver os olhos de meu pai assumirem aos poucos esse aspecto vazio. Quando cheguei esbaforido do trabalho com meu irmão, ele estava lá na cama, enquanto os paramédicos tentavam reanimá-lo. Mas não havia mais vida naqueles olhos nem naquele corpo. Lembro que me senti mal, como se o coração fosse transbordar, e corri ao banheiro para chorar. Minha mãe veio em seguida e me deu um comprimido para que me acalmasse. A partir daí, fiquei em suspensão. Deixei de sentir tristeza e um alheamento me invadiu, só me abandonando uns dois dias depois, quando despenquei.

Os paramédicos encerraram as tentativas de reanimação. Após um tempo, sentei ao lado de meu pai e fechei seus olhos apagados. Daí ao velório e ao enterro passou tudo como uma vertigem. No caixão, restava muito pouco da pessoa que sete meses antes fora diagnosticada com um câncer no pulmão com metástase no cérebro. Os cabelos, surpreendentemente pretos e vastos para a sua idade, tinham caído após a quimioterapia e – como disse minha mãe – ele foi se apagando aos poucos, como uma vela. Meu pai deixou a vida decentemente, em sua cama, como no verso de Lorca.

Esta semana, no próximo dia 10, a morte do meu pai completa 17 anos. O luto é um troço estranho, não sabemos quando começa e quando finda. Passado todo esse tempo, a saudade não cessou, apenas arrefeceu. O oco no peito foi aos poucos preenchido por uma matéria gelatinosa, que por vezes desvela a imensidão da perda. Sua voz, seu rosto, seu jeito introspectivo estão ainda nítidos na memória, e por vezes me impressiona como involuntariamente me converto em um espelho dele. O jeito de cruzar as pernas, de olhar a rua enquanto bebo um vinho na varanda, de não me expressar como deveria.

Sua ausência fez com que me apegasse ainda mais à minha mãe, pelo temor de perder a outra parte do meu alicerce. Juntos, comentamos às vezes como sua presença seria louvada, para que contemplasse a sua neta, minha filha, convertida em uma bela mulher de 20 anos. Ou para que comemorasse com a gente a chegada de mais um neto, filho do meu irmão. Principalmente, para que a calidez da sua companhia se lançasse como uma manta sobre o vento frio do seu desaparecimento.

Hoje, não posso compartilhar com meu pai minhas impressões sobre o Flamengo ou sobre algum Rioja delicioso que tomei. Não posso compartilhar os livros que leio, as músicas que escuto, os filmes que assisto, os políticos que admiro ou desprezo. Mas, de certa forma, lembro dele como eu mesmo gostaria de ser lembrado no futuro. Como alguém do bem, generoso e comum. Faço minhas as palavras de Verissimo, ao final de Conversa sobre o Tempo, quando ele diz: “Eu gostaria de ser lembrado como um cara decente. Um cara decente como foi meu pai, decente em todos os sentidos da palavra”. Acho que é por aí.