Um lugar de gente preta no Centro de Salvador: conheça o Boteco do Helder

Espaço incentiva projetos de afroempreendedores

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 17 de novembro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

O bairro do Dois de Julho carrega em seus passeios e chão de paralelepípedos uma parte importante e dolorosa de Salvador. A região fazia parte de um verdadeiro corredor da morte para os negros escravizados por aqui. O cortejo sádico iniciava na Casa da Câmara ou Cadeia Pública, passava pelo Largo dos Aflitos e seu arco final era desenhado entre a Rua Chile e a Praça Castro Alves, antes do destino final, a Praça da Piedade. Na Rua da Forca, as coisas ficavam mais tensas. Ela não tem esse nome por acaso: até os dias de hoje, serve de ligação entre o Dois de Julho e a Piedade. Era onde os escravizados avistavam a forca que, em minutos, lhes ceifariam as vidas.

O casal de sócios e namorados Helder Conceição, 29, e Tayná Benecke, 22, está há quatro meses construindo uma história “de mais felicidade para o povo negro”, neste lugar de tanto sofrimento histórico. A iniciativa é o Boteco de Helder, que é muito mais do que um barzinho no Centro da cidade.

Além da cerveja gelada, petiscos diversos e farta feijoada, o Boteco promove ações de financiamento colaborativo para que pessoas negras “realizem seus sonhos” e mira em se tornar um verdadeiro investidor de projetos idealizados por pessoas negras.

Quem vê a sintonia do casal não faz ideia que eles estão juntos há apenas oito meses. Segundo Helder, o motivo da ligação tão forte é que os dois se encontraram “no mesmo rolé”, de querer construir um espaço onde pessoas negras se sintam à vontade. Oito meses também é o tempo que a paulistana Tayná está em Salvador. Nascida no Capão Redondo, a estudante do curso do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia, na Ufba, conta que desde pequena tinha o sonho de morar em Salvador.

“Eu imaginava que aqui era uma verdadeira diáspora, que tinha muitos espaços de convivência e troca entre pessoas negras. Quando mais nova, não tinha como vir sozinha. A aprovação no vestibular foi a desculpa que encontrei”, contou a empresária.

A chegada na capital baiana, contudo, foi frustrante. Segundo Tayná, algumas semanas em Salvador bastaram para que ela sentisse falta do que classificou como “espaços confortáveis para pessoas negras”. “Contraditório, né?!”, questiona antes de completar que “é muito triste ver tanto preto afastado”.

O casal se conheceu em um aplicativo de relacionamentos. Trocando em miúdos, Tayná não é Jeniffer, mas Helder a conheceu no Tinder. Deixou o like, mas decidiu não esperar e fazer uma investida no Instagram da atual namorada. “Homem ganha dois, três likes. Mulher ganha uns 50. Se for linda que nem ela dá mais de 100, aposto”. Tayná aprovou o flerte, os dois conversaram, saíram na mesma semana e estão juntos desde então.

Não demorou muito para os dois reforçarem a ideia de que estavam andando sempre nos mesmos espaços. À vontade mesmo, a dupla só ficava no salão de Léo Santos, no Alto do Saldanha, em Brotas - onde Helder nasceu. Decidiram que precisavam construir esse espaço de conforto. Um dia, subindo da praia da Gamboa, avistaram o local onde hoje funciona o bar e tiveram certeza: tinha que ser ali.  Helder e Tayná criaram também o projeto Cerveja e Sonho, para levantar fundos para projetos de empreendedores negros (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) O Boteco fica próximo à feira do Dois de Julho, um pouco antes da rua que abriga o Clube Fantoches. Foram alguns meses de negociação para convencer o antigo dono a lhes alugar o espaço. Segundo Helder, a pedida era muito alta. Conseguiram fechar a negociação em R$ 2 mil reais de aluguel e tocaram o barco. Eles não tinham nenhuma experiência com comércio e são honestos ao afirmar que estão aprendendo na prática as técnicas de gestão para manter o bar. Contudo, a proposta fez sucesso imediato e rapidamente foram deixando o vermelho e conseguindo bancar as contas.“Um bar de preto, pra gente preta e sem mitiê? A gente sabia que isso tem potencial, era algo que buscávamos”, afirma Helder.O bar funciona de quinta a domingo e são raras as vezes de encontrá-lo vazio. Seja no espaço interno do bar, seja do lado de fora, no meio da rua mesmo, onde conseguiu licença para colocar algumas mesas. A programação do Boteco é tão intensa quanto a busca por coisas novas.

Os dois sempre buscam novidades no cardápio, novos drinks e promoções. Na última delas, ofereceram R$ 1 de desconto em cada cerveja consumida para os clientes falarem em voz alta: “eu sou preto e sou lindo!”.

A dupla não se esconde na hora de assumir papéis sociais. No dia das crianças, colocaram uma banda de samba na porta do bar e incentivaram os clientes a doar brinquedos para o Terreiro Ilê Axé Torrun Gunan, que foram distribuídos para crianças de Fazenda Coutos e Valéria. O Boteco também arrecadou roupas, doadas para pessoas em situação de rua, e bancou um sopão no Dois de Julho. 

Todas essas iniciativas saíram do projeto chamado #CervejaeSonhos, que ajuda no financiamento colaborativo “para viabilizar o seu brechó, abrir uma lojinha, passagem de avião pro mestrado ou qualquer ideia fantástica que você tiver, mas não tem o capital inicial pra começar”.

Nessa pegada, já ajudaram Carol, que teve o projeto de mestrado aprovado na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), em Foz do Iguaçu, mas não tinha como arcar com passagens, aluguel e roupas de frio, por exemplo.

O funcionamento do Cerveja e Sonhos é simples: além de passar com a tradicional caixinha para outros clientes que queiram colaborar, o Boteco reverte 50% do lucro de toda cerveja que for consumida na mesa da pessoa que quer ser ajudada. Ou seja, a ideia é a seguinte: você faz um evento de despedida, por exemplo, no Boteco, e recebe por isso.

“O boteco é uma das etapas para o projeto maior. Em janeiro vamos para a segunda etapa que é investir, com capital de giro mesmo, em iniciativas e empreendimentos feitos por pessoas negras que têm boas ideias mas não conseguem levantar a grana para tirar do papel”, contou Tayná.

Especialidades No Boteco, os clientes podem se esbaldar com cerveja, drinks, refeições e petiscos. A especialidade da casa, sem dúvida, é a feijoada - servida em todos os dias de funcionamento (quinta a domingo). A porção individual da feijoada custa R$ 25. Para duas pessoas, o preço sobe para R$ 35. Helder garante que todas as porções são pensando em quem “é bom de boca”, então não é estranho que a feijoada para dois sirva mais gente.

Para quem só quer um tira-gosto, uma boa pedida é o bolinho de neve. Basicamente é uma porção de seis bolinhos fritos recheados com carne de sertão e empanados na tapioca.

Para beber, o Boteco oferece rótulos de cervejas que variam de R$ 7 a R$ 12. Mas o charme de lá são os drinks preparados pelo barman Jeferson Conceição, que também é advogado e filósofo.

São sete drinks fixos custando R$ 10. Alguns à base de cachaça e outros de vodca. O grande destaque é o ‘Sou Ricaaa’, sim, com três letras “a”. É composto por uva, gengibre, hortelã, cachaça, gelo e açúcar. Não é incomum que Tayná peça aos clientes para imitar a atriz Carolina Ferraz, dona da atuação que deu origem ao meme que nomeia a bebida.

*Com a orientação da subeditora Andreia Santana