Um país que cai feito um viaduto

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  • Paulo Sales

Publicado em 1 de junho de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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A derrocada já vem de algum tempo, mas, nas últimas semanas, a sensação é de que estamos nos dissolvendo como nação civilizada. Com o congestionamento de caixões nos cemitérios e as revelações trazidas à tona por uma reunião ministerial que mais parece um conluio de mafiosos, o abismo se escancarou à nossa frente e nos equilibramos precariamente para não desabar nele. Impossível esboçar qualquer previsão sobre o que vai nos acontecer nos próximos anos, meses ou mesmo dias. Tudo se precipita como uma avalanche.

A inconcebível reunião em Brasília apenas descortinou nossa tragédia: a imundície rastejante, a podridão dos meios e fins, a inexistência de pudores. Escroques e estultos se irmanam entre palavrões coprofílicos e discursos descabidos. Se alguém ainda se identifica com aquilo, paciência. É a evidência do quanto o país está doente – e não me refiro aqui aos milhares de casos de covid-19. Nunca a boçalidade foi tão reverenciada. Nunca tantos cretinos compartilharam tamanho poder. Ou, como bem resumiu Celso Rocha de Barros, em artigo recente na Folha de S.Paulo: “Foi uma reunião de gente ruim que desperdiça tempo, vidas e esperança dos brasileiros.”

Tudo isso me faz lembrar do escritor e filósofo italiano Umberto Eco. Certa vez ele afirmou que as redes sociais estão concedendo o direito à palavra a uma “legião de imbecis” que antes falavam apenas “em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. Jair Bolsonaro é fruto da ascensão dessa imbecilidade coletiva e faz parte dela. Até então, a irrelevância de suas opiniões, sua visão de mundo primitiva e até mesmo sua curiosa capacidade de legar a própria parvoíce para sua prole permanecia no aconchego de um restrito círculo de amigos milicianos. Enfim, era problema dele, não nosso.

Mas então essa gente alcançou o poder. Não sei se apenas como fruto da ruptura institucional ocorrida em 2016 ou, quem sabe, por conta de alguma praga bíblica. Uma maldição que de tempos em tempos assola certas nações e seus povos, como a Alemanha e a Itália dos anos 30, o Chile e o Camboja dos 70 ou a Iugoslávia e a Ruanda dos 90. Hoje vivemos o nosso apocalipse particular. Temos que aturar, perplexos e impotentes, a defesa incondicional de torturadores, exterminadores de índios, piromaníacos das selvas e punguistas da fé alheia. Ou ouvir discussões sobre globalismo, ideologia de gênero, terraplanismo e outras teorias estapafúrdias. E daí?

Agora, no auge de uma pandemia que faz pessoas desabarem como peças de dominó, a situação é mais grave, pois envolve vidas. Milhares de vidas. Mais do que um governo desastroso conduzido por uma confraria de néscios, o que assistimos é o aniquilamento de um processo civilizatório que levou séculos para se formar – e que no Brasil sequer foi concluído. Como diria Caetano, aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína. Não por acaso o velho Aldir saiu de cena. Como é possível haver esperança equilibrista num país que cai feito um viaduto?