Um poeta e uma cidade

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 21 de setembro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

No início do documentário A Luta Poética, Ferreira Gullar relembra seus tempos de São Luís, onde nasceu, e da intensa atividade cultural que vivenciou na cidade durante a juventude, antes de se mudar para o Rio de Janeiro, em 1951. No meio das lembranças, ele fala de José Sarney, também filho da capital maranhense, como um dos expoentes da vanguarda intelectual local. Isso foi no final dos anos 40. Passadas sete décadas, o que resta desse antigo expoente de vanguarda ludovicense? Apenas um retrato na parede, diria Drummond. Hoje um nonagenário, Sarney – que, ao contrário de Gullar, nunca foi grande – apequenou-se com o tempo.

Como ex-presidente, não traz boas lembranças para quem viveu o trauma da hiperinflação e de uma redemocratização capenga. É também o patriarca de uma oligarquia que relegou o Maranhão a uma indigência abissal, até mesmo para os padrões do Nordeste, região posta à margem do desenvolvimento por que passou o país no século 20. A pergunta que fica é: como permitiu tamanha iniquidade? Afinal, trata-se de um membro da Academia Brasileira de Letras, autor de um punhado de romances. Sarney não é um tipo estulto, torpe e ordinário como, por exemplo, Jair Bolsonaro. Mas, de expoente da vanguarda quando jovem, deixará a vida como expoente do atraso.

Estou em São Luís a trabalho. Não conhecia a cidade e começo a nutrir alguma simpatia por ela. O centro histórico é bonito e tranquilo. A brisa morna, a longa faixa de areia e a simpatia inata do seu povo fazem lembrar outras capitais nordestinas, como Aracaju, Natal ou Fortaleza. Hoje, uma semana após a chegada, pus enfim, ainda que rapidamente, os pés na areia e na água do mar. Uma sensação agradável de sossego se impôs. Afinal, desde fevereiro, quando a pandemia começou a dar as caras no Brasil, só podia contemplar o oceano de longe, sem abraçá-lo, me sentindo como um desterrado, um exilado apátrida.

Apesar da saudade de casa, gosto de pisar na terra em que Ferreira Gullar brotou. A mesma que o atual governador, Flávio Dino, começa a transformar em algo minimamente digno, depois do meio século de reinado da dinastia Sarney – página infeliz já devidamente virada, ao que tudo indica. Morto há pouco menos de quatro anos, Gullar é o meu poeta brasileiro preferido. Criador magnífico de uma poesia de rigor, mas também de sentimento. De inovação formal, mas também de reverência à tradição. Acima de tudo, uma poesia incisiva como uma jangada varando o mar.

Desde a adolescência acompanho seus versos, seus mergulhos dentro da noite veloz. Não me agrada seu flerte com o experimentalismo da aventura concretista, que depois renegaria. Mas confesso minha devoção à sintaxe ritmada do balanço do trem que derrama seus sentimentos mais íntimos na obra-prima Poema Sujo. Sua poesia espalha pelas páginas o espanto diante do absurdo da finitude, a porta que falta para haver algum sentido, o mais ínfimo sentido: “À vida falta uma parte / — seria o lado de fora — / pra que se visse passar / ao mesmo tempo que passa / e no final fosse apenas / um tempo de que se acorda / não um sono sem resposta. / À vida falta uma porta”.

Enquanto escrevo, solitário aqui neste quarto de hotel maranhense, me deixo levar por esses versos, tecidos com a delicadeza com que se concebe uma vida. E deixo vir a reboque reminiscências do meu próprio passado, que emerge como um cachalote. Um passado no qual a descoberta da grande literatura desempenhava papel essencial, como se desbravasse países. Queria, naqueles tempos, entender a mim mesmo, o meu entorno e a enorme engrenagem à qual estou algemado e que um dia vai me cuspir fora, como a um caroço de azeitona. Era uma busca tola e vã, reconheço hoje. Porque, como diz o poeta, à vida falta uma parte.