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Paulo Sales
Publicado em 19 de setembro de 2022 às 05:03
- Atualizado há 2 anos
Oswaldo Montenegro tem uma canção bonita, embora um tanto piegas, chamada A Lista. Nela, ele elenca uma série de perguntas, feitas provavelmente a alguém já na maturidade. “Faça uma lista de grandes amigos. Quantos você ainda vê todo dia? Quantos você já não encontra mais?”. Ou: “Quantas pessoas que você amava hoje acredita que amam você?”. E a minha preferida: “Quantos defeitos sanados com o tempo eram o melhor que havia em você?”>
Respondo com tranquilidade à maioria desses questionamentos. Mantive a maior parte dos verdadeiros amigos de juventude. Aquelas figuras sólidas como cascos de navio que ainda hoje me acompanham, mesmo à distância, conservando o elo de afeto, companheirismo e cumplicidade de quando nos conhecemos. Esses parceiros de jornada honram a minha amizade e sei que posso contar com eles.>
Com relação aos amores do passado, penso – ou quero pensar – que ainda sou lembrado com carinho, mesmo no caso daquelas que não vejo há décadas ou com quem não tenho mais contato. Não gostaria de ser um fantasma aterrador a assombrar noites de insônia alheias, apesar de saber que devo ter ferido alguém, assim como já fui ferido. Ninguém escapa sem arranhões, às vezes no sentido literal, de um grande amor. E muitos desses arranhões permanecem de alguma forma.>
Quantos aos defeitos, realmente não sei o que dizer. É evidente que os tinha aos montes e que muitos foram preservados. Há, porém, um defeito que deixei pelo caminho e que lamento por isso: a minha propensão à abstração. Era como se habitasse um universo alternativo, composto de utopias e distopias particulares, mas também de um olhar romântico e pouco pragmático diante das questões da vida real. Em outras palavras, era um tremendo sonhador, capaz de fabular possibilidades inalcançáveis para o meu futuro que obviamente não se concretizaram.>
Seguindo o conselho de Rilke, aquele jovem poeta beat de vinte e poucos anos investigou nos “recantos mais profundos da alma” qual o motivo que o mandava criar versos. E se deu conta de que não morreria se lhe fosse vedado escrevê-los. Reconheci logo que não seria um dos grandes, nem teria a determinação necessária para um dia ser. Contentei-me com a mediocridade e segui em frente. Aqui estou.>
Gosto muito de uma frase de Julian Barnes, do romance O Ruído do Tempo: “Talvez esta seja uma das tragédias que a vida trama para nós: é nosso destino nos tornamos, na velhice, o que na juventude mais teríamos desprezado”. Fico me perguntando se isso ocorreu comigo, embora ainda não tenha ultrapassado a fronteira da tal terceira idade. Seria eu motivo de desprezo e vergonha para aquele rapaz que fui, com sua impetuosidade inócua? Creio que não.>
Há certa coerência entre quem eu era e quem eu sou. Permaneço ensimesmado, bicho sorrateiro que evita a exposição à luz. Gostaria de ter ido mais longe, de ter conhecido mais países, de ter comprovado que sirvo para alguma coisa. Sou um energúmeno na vida prática, incapaz de bater um prego ou trocar a resistência de um chuveiro. Participo de reuniões de condomínio nas quais não compreendo metade dos assuntos abordados e pairo como um parvo nos detalhes técnicos. É o meu jeito, não tem jeito.>
Respondendo a mais uma pergunta da canção de Oswaldo Montenegro – “Quantos mistérios que você sondava? Quantos você conseguiu entender?” –, permaneço na obscuridade diante das mesmas questões primordiais de quando tinha 15, 21 ou 35 anos. Porque sei que não existem respostas minimamente palpáveis que se lancem ao abismo da nossa desimportância e do nosso desconhecimento, para além dos clichês ancorados no misticismo e na fé.>
Fé que não cultivo, ateísmo renitente que também compartilho com aquele rapaz que tentou inutilmente desbravar este país gigante em longas viagens de ônibus e aventuras de carona, ao lado de moças de olhos azuis e bochechas rosadas. Um Kerouac igualmente tímido e sedento, mas sem um décimo da coragem e do talento do original, que se empanturrou de benzedrina para conceber uma obra-prima despejada em um rolo de papel contínuo.>
Como no poema de Pessoa, digo que não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. E pesadelos também.>