Uma caipira compulsória

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  • Kátia Borges

Publicado em 25 de junho de 2022 às 07:00

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Confesso que nunca gostei de dançar a quadrilha. Na infância era uma severa imposição. Diretores de escolas infantis pareciam pensar em junho o ano todo, tamanha a animação e os detalhes dos preparativos. Mobilizavam com antecedência os alunos, formalmente intimados a comparecer aos ensaios de dança na quadra de esportes, caprichavam na decoração, com bandeirolas coloridas de papel atravessando o teto das salas de aula, e convidavam os pais para assistirem ao espetáculo.

Era dia de ver os “tios”, pais de nossos coleguinhas. Famílias inteiras compareciam ao grande evento, no qual virávamos pequenas estrelas obrigadas a acertar o passo (caminho da roça, caracol, túnel...), sob comando de um marcador exigente, geralmente um professor que trocava a sisudez diária pela estridência dos gritos. “Olha a cobra!”. “É mentira”. A música junina estalando nos ouvidos dava saudade da roça do Barro Vermelho, para onde eu queria fugir bem naquela hora.

Fotógrafos profissionais contratados pela escola, carregando máquinas e flashes enormes, encarregavam-se do registro individuais das crianças fantasiadas diante de fundos falsos que simulavam casas do interior, uns cenários forjados com esteiras de palha grampeadas nas paredes e vasos de flor. Tudo aquilo, aliás, tudo que implica em simulação de alegria, envolve uma pressão que me põe aflita. A esquisita da turma, eu só aceitava vestir a caipira depois de muita negociação.

Quando revejo essas fotos antigas, noto como eu estava desconfortável. Uma maria chiquinha teimosa escorregando nos cabelos muito lisos, o batom vermelho nos lábios fininhos meio borrado, cinco ou seis bolinhas pintadas com caneta hidrocor, nas bochechas, dentro de borrões em círculos de pó compacto. Vestidinho de chita no capricho, que minha mãe costurava na máquina com afinco dois meses antes da festa. Sapatinho de boneca apertando sem piedade os dedinhos dos pés.

Era comum ver crianças descalças voltando pra casa, algumas no ombro dos pais, que só lamentavam mesmo a ausência de licor. Na expressão da caipira compulsória que fui, uma inquietação. Nada contra o São João. Celebração das mais bonitas, explosão de cores e sabores, além de ter se tornado no Brasil culturalmente afirmativa. O que me agoniava é o que me agonia ainda hoje, a festa marcada no calendário, violando a timidez, a imposição de um movimento que nos arranca de nós.