Uma crônica para Marília

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  • Kátia Borges

Publicado em 14 de novembro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Na última semana as redes sociais entraram em ruidosa desarmonia. Nada a ver com as disputas políticas que, desde 2018, ergueram trincheiras, com direito a artilharia pesada, mensagens falsas e fogo amigo. Muito menos com as controvérsias sobre o insondável término da pandemia, que ceifou as vidas de mais de 600 mil brasileiros, ou com o estrago causado pelos fanáticos antivacina, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, ou ainda com o retorno das aglomerações festivas na Bahia.

Em meio a tantas notícias desesperadoras sobre a fome no Brasil, pessoas comprando ossos, em lugar de carne, e procurando restos de alimentos nos caminhões de lixo — e a sombria perspectiva de uma nova onda, forjada pela mutação do vírus —, testaram nossa infindável paciência os comentários esnobes em torno da morte trágica de uma das artistas mais populares do país. Juro que até tentei acompanhar saudavelmente os “debates”, participar deles, quem sabe, mas decidi silenciar e chorar.

Chorei tanto que meus olhos doíam no dia seguinte. Chorei desde que soube da queda do avião e vi, pelas primeiras imagens, que seria impossível que os ocupantes saíssem vivos da aeronave. Chorei não só por mim, menina da Cidade Baixa, criada com o ouvido colado no radinho de pilha, coração sintonizado desde a infância nas canções populares que tocavam nas AM/FM da vida. Chorei pelas pessoas que, como eu, cantavam a plenos pulmões seus refrões de amor, dor de corno e traição.

Marília e suas canções vibravam em mim em um lugar muito sensível, aquele onde guardo a criança que fui, filha de um operário de refinaria e de uma costureira, viciada em novelas, desenhos animados e programas de auditório. Crescendo com trilha sonora de Love Song Back Again, entre as vozes de Roberto Leal e Roberto Carlos, Perla e Jane e Herondy, tentando alcançar as notas musicais de Vanusa nas Manhãs de Setembro, ouvindo José Augusto, Fernando Nunes e Odair José.

Se fecho os olhos e recordo as viagens que fazíamos com meu pai à terra natal de minha mãe, a saudade vem embalada pela voz de Kátia, a xará cantora, que invadia cada metro quadrado da pequena cidade ressoando nos megafones instalados nos postes. Mais tarde, eu me juntaria aos que apelidaram essa música de “melô do cachorro”. Na adolescência, chegaria mesmo a renegar a paixão por Elvis Presley, fazendo coro com a galera que descobria as primeiras músicas da banda Camisa de Vênus.

Não seria necessário, em condições psicológicas normais, ter que se justificar pelo gosto ou pelo fato de desconhecer esse ou outro artista. Muito menos ter que contestar frontalmente quem, a pretexto de isenção, usa a morte de uma jovem cantora para a atacar publicamente em um obituário, com comentários sobre sua aparência, em nome de likes e cliques. Marília era completa em seu gênero musical. Cada sucesso emplacado por ela foi merecido e fez jus à exata medida de seu talento.

Suas letras deixavam à mostra a incrível habilidade que ela possuía em narrar histórias. Talvez não as minhas ou as suas. Mas, certamente, a de muitas pessoas, sobretudo mulheres. Fará uma imensa falta nesse Brasil que, aos poucos, torna-se um Butão às avessas. O país da tristeza. E antes que me esqueça, esta crônica não é uma justificativa sobre a grande admiração que sempre nutri por ela. Esta crônica é sobre música, e o lugar que ela constrói dentro de nós, bem ali onde bate o coração.