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Uns meninos muito iguais

  • Foto do(a) author(a) Kátia Borges
  • Kátia Borges

Publicado em 13 de fevereiro de 2022 às 14:14

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Certa vez um amigo muito querido foi expulso de um ônibus de turismo no qual viajava de férias rumo a um destino místico. Ele me contou que uns garotos implicaram com a sua aparência hipster enquanto tirava um cochilo. Ao abrir os olhos, escutou o burburinho e percebeu que era o alvo de comentário e risos. Claro que reagiu mal e comprou briga. Mas a coisa evoluiu de tal modo que ele, aventureiro solitário diante de um bando de cretinos, foi convidado a descer na estrada no ermo.

Era quase madrugada. Sem alternativas, teve que pedir carona na escuridão durante horas com a mochila nas costas. Confesso que nunca me conformei com a história, embora ele tenha dito que esse confronto o acalmou um pouco e que os dias seguintes foram até positivos. Ora, era típico do meu amigo, e eu sabia disso, guardar consigo apenas a parte boa das memórias. Inúmeras vezes rimos até chorar de situações dramáticas. Possuíamos em comum um jeito Cândido de encarar as tragédias humanas e o cotidiano como algo do tipo “devemos cultivar nosso jardim”.

No entanto, confesso que a ideia de o imaginar no meio do nada, após ter sido agredido por uns meninos idiotas, sempre volta a me incomodar quando alguém aborda os conceito de beleza e de perfeição. Se escrevo sobre isso agora, só penso em seu desamparo. O ermo, a noite alta, os faróis dos carros que passavam sem parar iluminando a sua figura quixotesca. E havia ainda aquele sentimento muito amargo de inadequação ao mundo. Feito uma fogueira alimentada continuamente por papéis antigos. Dezenas e dezenas, quilos e mais quilos.

Trazemos conosco documentos carimbados desde a infância. O mesmo selo escrito “cuidado, frágil”. As mesmas imagens feitas nos lambe-lambes. Rostos espantados olhando diretamente para a lente de uma Roleiflex, ninguém escapava ao vexame dos três por quatro. Meu amigo descreveu seus agressores como meninos muito iguais. Desses que parecem saídos da linha de montagem de uma fábrica de automóveis, todos tão simétricos e no padrão que até penteiam a franja para o mesmo lado.

Naquela época, da história da expulsão do ônibus turístico, ainda não existia a febre das redes sociais, o registro obsessivo de tudo que se move. As grandes vergonhas, os pequenos ridículos, guardávamos para nós. Então era só o meu amigo mesmo naquela longa e sinuosa estrada sem uma foto sequer da Lua desfocada ou uma frase espirituosa ou desabafo triste, algo que resumisse em poucas palavras a sua desdita e convocasse a levantar uma hashtag do tipo “estamos juntos”.