Vandal: 'Eu não tenho mais tempo para infelicidade'

Na Cidade da Música, de onde é curador, músico falou da vida, projetos e ansiedade para voltar aos palcos e lançar o primeiro disco

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  • Da Redação

Publicado em 5 de novembro de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Paula Fróes/CORREIO

Curador do espaço dedicado ao trap e ao rap na Cidade da Música, o cantor Vandal vivendo um período de transição. Não sabe mais se pode ser classificado como um rapper e quer ser muito mais do que um rótulo. Foi justamente no novo museu baiano que o músico conversou com o CORREIO, apresentou o local a partir de seu olhar, falou dos projetos e  contou sobre o seu grande sonho: ser um ícone negro contemporâneo. 

“Estar aqui é muito interessante, tanto pessoalmente quanto pensando no todo. A curadoria que fiz teve vários artistas, do passado, do presente e do futuro, porque essa é uma curadoria contínua, que não para. Eu sempre vivo muito a cidade, vivo artistas. Isso aí sou eu. Esse é um equipamento de primeiro mundo”, afirmou Vandal sobre a seleção que pode ser conferida no espaço localizado no Comércio.

Um dos focos da conversa foi a regravação de sua canção mais conhecida como frontman do BaianaSystem e em parceria com Djonga, Balah ih Fogoh, A música está disponível nas plataformas de streaming e o vídeo no YouTube. A versão original  foi lançada há seis anos, na mixtape TIPOLAZVEGAZH, escrita após Vandal receber a ligação de um amigo quando ainda vivia num contexto de criminalidade.  

A ideia de ser um hino de revide, como diz Vandal, e a nova versão da canção reafirmam esse potencial de resposta a um mundo racista,  também marca uma série de novas possibilidades em sua carreira e abre caminho para o lançamento de seu primeiro disco de estúdio - que deve sair no ano que vem.  .

Durante o papo, o artista também falou sobre a saudade do palco, os projetos, e sua vida antes e depois de ser Vandal. Ali, ele se permitiu ser Luís Sidnei, SIDOKA, Vandal e tudo isso. Foi taxativo ao contar que correu atrás de uma aprovação no rap, não conquistada, mas que hoje não tem tempo para ser infeliz. Com as graças de Santa Dulce, de quem herdou a devoção de sua avó Neuza Maria, ele quer ser artista. Confira a conversa:  Vandal na Cidade Música, espaço para o qual assina curadoria (Foto: Paula Fróes/CORREIO)  Na semana passada, você lançou BALAH IH FOGOH com Djonga e o BaianaSystem. Mas não foi exatamente uma música nova, já que essa é uma de suas músicas mais conhecidas. É remix, versão ou nova música?

Entender como um remix é entender o processo de produção. Basicamente, soa como remix. Mas eu chamo essa música de clássico, grito, um hino. Não é nem um hit. É uma música que está ali circulando desde o TIPOLAZVEGAZH, com uma versão de trap convencional, tipo Atlanta. BALAH IH FOGOH surge de uma ligação que eu recebi de um amigo quando estava embrenhado nesse processo de vida ilícita, de crime. Acabei musicando e deixei ali. Minha música é sempre ligada ao popular, uso jargões, gírias, o que o povo fala. Eu fujo de embromação pseudointelectual. Estou dialogando com o povo, até por ser oriundo de festa de largo.

Essa versão nova teve vários gatilhos. Eu cito dois como principais: primeiro, o trio elétrico, o Navio Pirata. Entender como uma música pode ser moldada, como ela foi se transformando ao longo dos anos. O BaianaSystem tem isso, muito de espontaneidade. Junix toca guitarra, Betinho, SekoBass, estão sempre se testando, se empurrando para criar possibilidades. O próprio Russo, conversamos muito.  A música do BaianaSystem vai acontecendo na hora, é um freestyle da banda toda, encontrando possibilidades dentro do circuito da folia e vendo o povo reagir a isso. São os experimentos de Junix, com a guitarra e essa cara de rock baiana, SekoBass com as montagens e ideia dele. Essa percussão profana e religiosa de Ícaro Sá, e aí a gente fala do Rumpilezz e sente muito o falecimento de Letieres, que pegou todos nós de surpresa. O BALAH IH FOGOH ganha construção no trio e o olhar para o povo. Mexíamos no estúdio, víamos a imagem, olhando o olhar, o suor do povo ali, o grito de revide que a gente dá ênfase. 

Outro ponto foi Fernanda, indígena do Baixo Sul do Estado.  Ela cantando BALAH IH FOGOH com os amigos, os policiais passaram e se sentiram atacados, se sentiram mal com o conteúdo de revide da letra e fizeram a detenção de Fernanda. Isso mobilizou a cidade dela, fiquei muito sentido com a situação, não quis enaltecer para não parecer que estava ganhando ibope dentro da situação. Após a mobilização ela ganhou a liberdade dela e tivemos contato. Ela me mandou um áudio, que aparece no fim do clipe. É um áudio muito verdadeiro e genuíno. Um desabafo, um revide. Eu pensava muito que precisava entregar ao povo essa situação, precisava contar essa história. Trazendo novamente a música, transformando ela numa música baiana, pensei que conseguiria fazer isso.

E por que Djonga foi o cara escolhido para esse processo?

Encontro Djonga no festival Coala, em São Paulo e ele me pergunta sobre o Carnaval, identificado com a faixa.  Eu avisei que a música ganhou uma versão nova e disse que tinha vontade de fazer o remix. Ele mandou o verso e aí veio um processo de maturação de quase dois anos. Recebemos Djonga por ser um artista contundente, discurso de fogo nos racistas, um dos poucos artistas que fala comigo verdadeiramente no rap nacional e se interessa por mim. Eu não tive apoio do rap nacional. A música se transformou nos carnavais com Junix, Seko e Ícaro. Uma música que foi virando baiana, religiosa, com mais musicalidade, saindo do processo de beat convencional e enaltecendo as bandas. A banda é resistência. O BaianaSystem é resistência por ser banda. Ouvindo Russo falar, a gente chega num ponto onde ele diz: é você agora. Eu me coloco em BALAH IH FOGOH como frontman do BaianaSystem e dessa construção de música baiana que vem desde CERTOH PELO CERTOH, que foi agraciada com o Grammy. 

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Esse novo formato e todos esses processos fazem da música uma ode à coletividade? É, até por todo o mundo que trabalhou na construção disso. Os créditos estão ali, esmiuçados com todo o mundo que trabalhou. Temos Fernanda como ponto principal, temos o BS, Djonga e a cidade. A gente mostra a cidade. O vídeo é uma vivência dentro da cidade. Não só a música tem essa coletividade para acontecer porque ela sai de Junix, com SekoBass, junto com Ícaro, com o BS cuidando e transformando ela e vai pra mão de Ganjaman em São Paulo onde ele faz a mágica acontecer da melhor forma possível. A gente recebe o vocal de Djonga, tem este áudio, tem um clipe com a visão de Cartaxo, de Phodismo, então temos essa ode à coletividade. Todo o processo que venho vivendo, fiz e faço desde a infância até aqui foi linkando às pessoas, o povo. O povo que trabalha com arte em música e o povo que é o povo real, o povo que vemos no coletivo, vendendo as coisas na rua, no dia-a-dia. Vandal e Djonga posam para as lentes de Filipe Cartaxo em frente à Igreja do Bonfim (Foto: Filipe Cartaxo) É correto dizer que isso vai de encontro a uma lógica de mercado e que ter uma banda é mais difícil hoje por isso?

As pessoas têm esse contexto. A tecnologia facilitou isso. Você pode fazer seu próprio beat, gravar, masterizar, mixar e ofertar isso. A cultura do self made, continuamos participando dela por não estarmos inseridos em grandes mercados, indústrias, a grande máquina disso tudo. Mas, oriundos da periferia, sempre precisamos da coletividade para sobreviver. Gosto de ver o que eu faço reverberando em muita gente e pra isso muita gente participa disso. É muita gente, e às vezes é pouco. Poderia ser mais. Quando você grava um clipe como o que gravei, mexo com o povo na rua. O povo saindo nas janelas, falando. Ou seja, eu estou usando essas pessoas. Usando num sentido bom. Isso é uma ode à coletividade. 

Você está feliz com esse processo?

Estou. Na verdade, eu não tenho tempo pra ter infelicidade mais. Com o passar dos anos, quando você vê o seu esforço, o seu suor materializado e reverberando em muita gente, você alcança uma felicidade, que é uma felicidade de trabalho. A gente sofre com aspirações. Queremos participar disso, daquilo que é mostrado. Mas eu me coloco como alguém que se encontrou., como um representante genuíno de um povo preto, de periferia. Quando entendi meu lugar dentro disso tudo, essa felicidade me contaminou de uma forma mais assertiva. O BALAH IH FOGOH é um passo de uma movimentação que existe há mais de 10 anos e coroa um momento, abre o caminho do meu primeiro disco de estúdio, que é o próximo passo. Vandal acredita que nova versão de BALAH IH FOGOH é um ponto de partida para novos rumos  (Foto: Filipe Cartaxo) Fala mais sobre esse disco...

O meu primeiro disco de estúdio é um novo ponto nesse processo musical nacional. É diferente de tudo que está sendo feito, é um disco em que consegui mergulhar dentro do estúdio nesse processo pandêmico. Sempre fui um artista de pista, de vida de rua. Nunca tive tempo pra isso. Viajava com o BS, fazia minhas próprias coisas e o processo pandêmico me deu a oportunidade de mergulhar no estúdio. Tirei muitas ideias de minha mente junto com Tiago Simões, que produz o disco comigo. É um banho de musicalidade, de banda. Tenho Jonix, Betinho, Seco Bass, o Ícaro assina a percussão do disco todo. Sou muito privilegiado por conseguir fazer algo diferente e trazer novas possibilidades no cenário nacional e quiçá internacional. Ele virá ao povo quando os palcos voltarem. Ele foi feito para ser tocado, é um disco feito para shows, festivais e etc. Esse não é um disco de stream convencional, de loops de playlist. É um disco para acontecer e tem que acontecer com o povo. A gente está vivendo esse termômetro, aguardando essas notícias e liberações. Mas minha vontade é entregar o mais breve possível se não conseguir entregar em dezembro agora, minha vontade é entregar no primeiro semestre do ano que vem.

Quando Luís Sidnei virou Vandal? Você imaginava que conseguiria chegar onde está e acessar os espaços que ocupa? 

Na verdade, essa criança que veio dessas mazelas de vida, dessas dificuldades, mas sempre com um perfil diferente dentro do contexto de favela: inventivo, aspirando novas possibilidades. Essa criança tinha um apelido de Sidoka. Me embrenhando na arte, através da pichação e graffiti com esse nome, venho ganhando um apelido dentro desse circuito na cidade como Vandal. O Vandal significa vandalismo no conceito europeu, na língua inglesa. Sempre fui pra frente, incisivo, sempre tive uma vontade a mais em relação aos outros e aí subia em prédios, pintava portões, fazia ações surreais dentro desse campo. E o nome veio nisso aí. Cada dia mais eu fui sendo chamado de Vandal por um novo público que me conhecia. Nessa minha realidade de favela, vivi uma linha tênue de bem e mal. Encontrei o crime como um conforto e me debrucei nisso durante um momento da minha vida. Quando eu abandonei a relação com o crime e venho para a música em definitivo, tive esse pensamento de que não conseguiria voltar mais em relação ao nome Vandal. Esse mundo novo, um mundo extra-favela, foi um mundo que ingressei como Vandal. Tem uma estética, uma relação com o próprio graffiti e pichação, o nome Vandal veio. Eu não escolhi meu nome. Sidocka continua no bairro da Cidade Nova, mas Vandal veio nesse novo mundo que abriu todas as portas que tenho abertas hoje.

Você sempre curtiu música? E o rap sempre fez parte de sua vida?

Desde a minha infância, meu avô Arnaldo trabalhava como segurança na TV Itapuan e trazia muitos discos. Do U2 a Gal Costa, de quem eu sou fã. Mergulhando nesses discos, tive os primeiros contatos com a música. Crescendo, caí em festas de largo, onde vejo as atrações da favela e tive o primeiro contato com a música baiana dentro de um processo de acontecimento real e verdadeiro. Eu me considero oriundo de festas de largo dentro de um processo que a gente conhece bem e é característico de Salvador. Depois da festa de largo, comecei a escrever letras para bandas de pagode. Eu e um amigo, Marcone, tínhamos vontade de ser backing vocal de banda de pagode. A gente achava surreal porque só fazia as dobras, metia os passos, as meninas se identificavam e a gente achava maravilhoso entrar nesse circuito. Quando eu pego a transição de vida com o graffiti e pichação, que desbravo outros lugares da cidade, caio no circuito do Ministéreo Público, onde recebo informações que me  transformaram: dancehall, soundsystem, o reggae que já tinha contato com Edson Gomes, Sine Calmon, a banda Morrão Fumegante. Lembro das geladeiras de som na favela. Quando vi tudo isso, uma coisa mais tecnológica no Ministéreo Público vi que era possível. O rap não me encantava por si só, achava que faltava algo nele. Eu tinha um marasmo com rap. Com a internet, busquei música em contextos internacionais e aí encontrei o Grime. Fiquei maravilhado. O D’Mack, artista do graffiti, tatuador, MC de rap também me dá o Boy in da Corner [Álbum de estreia de Dizzee Rascal]. Quando eu ouvi aquilo disse: ‘isso é o que eu quero fazer’. Era o que achava que faltava pro rap. Agressividade, texturas, synths, algo completamente fora do padrão. Eu via o rap muito chato, muito certinho e quando ouvi o Boy in da Corner com vocais, drive, pensei em minha voz. Minha voz é carregada de sotaque. Apaixonei pelo grime e dei nele ênfase em toda minha carga de vida. Instrumentais rápidos, vocais rápidos. E isso não agradou o povo, que não estava pronto para aquilo naquele tempo.

Depois, vi grupos de Londres numa cadência mais suave, via vozes femininas e falei ‘pô, calma’. Aí juntei a gama de informações que tinha desde os discos do rock baiano, porque meu avô tinha contato com Raul Seixas, festas de largo, pagodão, toda essa música que fervia na minha vida e adequei ao Grime, adequei a essa estética. Cadenciei a voz para soar mais como samba reggae, para ser mais falado. Juntei isso com samba reggae, o arrocha, o pagodão e culminou na mixtape TIPOLAZVEGAZH.

Como foi que você administrou a saudade do palco nesses últimos dois anos?  

Não ter o povo, o público, é muito difícil. Sofri muito. Tive depressões de vida, saudade disso. Estou super ansioso, tentando entender ainda, vendo como vai ser a reabertura. Creio que em novembro as coisas comecem a voltar em relação ao shows na nossa cidade, que foi uma das que mais respeitou o processo de pandemia, mas só sinto saudade. Carnaval, estar no trio, Iemanjá, esse contato de rua e povo me deixa com muita saudade.  Capa de BALAH IH FOGOH (Arte: Phodismo) Santa Dulce ajudou a segurar essa dor?  

Eu coloco minha ligação com Irmã Dulce como um dos pontos que me salvaram  e prepararam para todas as coisas que vieram. E me fizeram ter o entendimento de que não sou um artista convencional. Ela vivia para o povo, tinha esse contato com o povo, essa sensibilidade completamente diferente. Me vi nisso a partir do momento que tive as informações que precisava, quando perdi minha avó [Neuza]. Dentro desse processo de hospitais, o sistema de saúde deficitário que temos, eu estava beirando à loucura, entrando e sentindo as debilidades disso: pressão alta, tendo que ser medicado junto à minha avó por estar no ápice da ansiedade e do desespero em si. Foi em Dulce que consegui ter essa graça depois de lutar meses por uma regulação para minha avó, conseguimos uma vaga dentro do Irmã Dulce.

Até que perdi minha avó e com toda a certeza de que quando ela foi pra lá, foi para me preparar e realmente receber o abraço de Dulce e de minha avó. E entender que era um processo de passagem. . É uma dor de vida muito forte. Quando fui sepultar minha avó, tinha uma ala nova na Quinta dos Lázaros, que, por incrível que pareça, se chama Santa Rita também. A gente sente, falando soa superficial, mas vendo esse trânsito e indo lá, senti algo que precisava sentir e hoje em dia eu sou grato por ter recebido esse abraço da Santa Dulce e ter feito com que eu me preparasse e entendesse não só o que era perder minha avó, mas entender que sou isso. Um instrumento de transformação para o povo. Vendo a história de Dulce, recebendo o abraço dela, que a gente sente, me coloquei a partir disso como um artista de povo. Como alguém ligado ainda mais ao povo. 

O que você curte no dia-a-dia? Quem é Vandal quando ninguém vê?

Eu sou uma pessoa que passa fases. Gosto basicamente de conhecer possibilidades novas, desde culinária, arquitetura, design. Esse campo artístico é muito eu. Eu vivo esse trânsito favelão. Gosto de estar com os amigos, comendo água numa lajezinha. Eu gosto de ver o povo, é o que alimenta minha caneta. Na pandemia fiquei mal para escrever porque não estava vivendo as coisas. O meu lazer é lazer de baiano. Você vai me encontrar numa bênção numa terça, numa lavagem, eu sou uma das pessoas que mais sentiu esse processo de pandemia porque meu trânsito é esse. 

Qual a pergunta que você gostaria de responder e nunca te fizeram? E qual o seu sonho?

Nunca me perguntaram qual o meu sonho. E você fez essas duas. É uma pergunta que queria que fizessem. Meu sonho é conseguir fazer mais do que eu faço pro povo e me tornar  justamente um ícone preto, um ícone popular, de periferia.  Eu quero ser a linha de frente. Entendi meu papel dentro disso tudo e quero ser quem puxa o trio.