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Fernanda Santana
Publicado em 16 de maio de 2020 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
Luciene e Sônia moram em extremos da cidade de Salvador. A primeira vive na Ilha dos Frades, bairro cujos moradores têm o menor rendimento médio, e a segunda em Patamares, no topo da pirâmide social da capital, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As duas, a 48 quilômetros e um abismo social de distância, aceitaram relatar ao CORREIO como vivem a pandemia e de que maneira são impactadas pelas próprias condições financeiras. Cada personagem desta história representa um extremo, que será contada a partir dos relatos fornecidos. As duas - a empresária Sônia Fedulo, 68, e a empregada doméstica Luciene do Nascimento Silva, 66 - fazem parte do grupo de risco para a doença.>
Enquanto Sônia mora em Patamares, onde os 6.156 moradores - segundo o último censo demográfico, em 2010 - ganham, em média, 3.970, Luciene vive sozinha no andar térreo de uma casa compartilhada e sobrevive com R$ 522,50, na Ilha dos Frades, onde a renda média é R$ 235,37.>
A reportagem seguiu o mesmo padrão de perguntas para as duas entrevistadas. Perguntamos, por exemplo, a rotina diária, se tinham medo de ser contaminadas, quais cuidados adotavam, o que achavam das medidas de isolamento, se conseguiam cumprí-las e como mantinham o trabalho. Sônia, dona de uma escola, trabalha de casa, na companhia do marido, mãe, filha, genro e duas empregadas. Luciene teve o salário mínimo cortado e precisou começar a tomar remédio para dormir.>
O antropólogo Marcelo Moura Mello acredita que a pandemia escancarou a desigualdade brasileira. “Eu salientaria dois pontos: primeiro deixa bastante escancarada a desigualdade brasileira e os perigos de se naturalizar isso. O segundo é a falta de coordenação do governo federal”, opinou.>
Na opinião dele, essa desigualdade, evidentemente, repercute nas vivências durante a epidemia. Nos relatos a seguir, você entendera como, na prática, isso acontece. >
O dia a dia de uma moradora do bairro mais rico >
Sônia Fedulo, 68, vive numa rua cercada pelos muros de um condomínio de alto padrão, em Patamares. A maioria das casas vizinhas tem dois ou três andares - quase nunca são térreas e quase sempre com piscinas margeadas por sombreiros, mesas e cadeiras. Sônia Fedulo passa os finais de semana em sua casa de praia (Foto: Acervo Pessoal) A empresária mora numa residência de três pavimentos, onde passa a quarentena com o marido, a mãe, a filha, o genro e, alternadamente, duas empregadas.“Medo eu tenho demais. A gente tenta, dentro do possível, se proteger. Não tem abraço, nem beijo, e usamos máscaras quando saímos”, conta.Dona de um colégio, ela trabalha de casa desde o dia 19 de março. A unidade foi fechada e os professores passam, online, atividades aos alunos. Ela, na posição de diretora, auxilia a mudança. “Está difícil, é uma grande mudança”, relata.>
Seu novo escritório é na sala de casa, um dos cinco cômodos da casa, onde atende funcionários e recebe reclamação de mães e pais que querem cancelar a matrícula dos filhos. Pelo menos 30% dos pais, não tem pagado as mensalidades. Sônia tem dificuldades para dormir, "tido palpitações". Na semana passada, foi duas vezes ao médico para exames.>
O marido, Edson, é advogado, tem a mesma idade que a esposa e atua em home-office - escritório em casa na tradução livre do inglês para o português. Ele tem diabetes, outro fator de risco para a covid-19, fora a idade. Sônia tem colesterol alto.>
A mãe da empresária, aos 96 anos, é quem mais carece de cuidados. “A cuidadora mora aqui, isso deixa a gente mais tranquilo, mas quando é uma folguista, já toma banho, troca logo de roupa”, diz.>
A família não dispensou as duas funcionárias - a empregada e a cuidadora. A doméstica, desde o início da epidemia, trabalha três vezes por semana, e os patrões a buscam e levam para casa, num bairro periférico da cidade, a 15 minutos de carro.“Eu não sei, nem gosto de cozinhar, e também tem muita gente em casa, seis pessoas, além do que, continuo trabalhando e não tenho como arrumar tudo. Preferi reduzir, evitar que ela viesse de ônibus. Era para ter cancelado, mas não tem jeito, vou passar fome?”, questiona.Quando a empregada chega ao trabalho, toma banho e troca de roupa. Nem sempre fica de máscara, que abafa o rosto e aumenta a sensação de calor durante os afazeres. “É muito difícil fazer ela ficar o dia todo”, confessa.>
“Vira e mexe eu também tô fazendo faxina em casa, arrumando uma coisa ali, outra aqui”, complementa Sônia. Como as aulas de dança e hidroginástica foram canceladas, o serviço em casa é visto até como exercício. Às vezes, ela vai à piscina e treina alguns movimentos de hidroginástica.>
Às quintas-feiras, dois carros partem da casa em Patamares. Um é geralmente ocupado por Sonia, o marido, a mãe e a cuidadora e o outro pela filha e o namorado. O destino é a residência de praia na família, no litoral norte.>
Na bagagem, vão as comidas preparadas e congeladas pela empregada que alimentam os seis nos dias seguintes. Na primeira entrevista, Sônia fazia uma faxina na casa, localizada de frente ao mar.>
Como a residência, com sete quartos e dois andares, tem partes em vidraça, é sempre possível enxergar a praia. É lá que Sônia consegue minutos de tranquilidade e sente a ansiedades abrandar.“Aqui é mais confortável. Fico o dia todo olhando o mar, me acalma muito”, diz.A família retorna para Salvador entre segunda e terça. “O mais difícil é não ver os [quatro] netos e os [cinco] filhos. No Dia das Mães, quando recebi as mensagens, foi um chororô danado”, lembra.>
Pelo menos oficialmente, nenhum amigo ou membro da família foi contaminado pelo coronavírus. Na sua casa, é o marido quem costuma ir às compras em supermercados e farmácias - sempre com máscara e luva.>
As mercadorias são borrifadas de álcool por Sônia antes de levadas para a dispensa. Mas Sônia acredita que as medidas de isolamento “estão muito frouxas”.“Quando vou levar a empregada em casa, vejo muita gente na rua. Com certeza, para o pobre que tem que trabalhar, é muito mais difícil que para quem tem condições. Ninguém consegue viver com R$ 600”, opina.As únicas distrações dos dias de isolamento, conta Sônia, é assistir a novelas e programas de entretenimento; na casa de praia, caminha pela areia e ouve as ondas colidirem nas pedras. Nunca vê atrações jornalísticas que falem sobre coronavírus, para evitar ainda mais desgastes emocionais. O marido, enquanto isso, atualiza o catálogo de filmes. >
A rotina de uma moradora do bairro mais pobre >
Luciene do Nascimento Silva, 66, é nativa de uma região chamada Paranama, na Ilha dos Frades. Mora sozinha numa casa de dois andares - ela vive no térreo e três parentes no pavimento superior. A empregada doméstica ainda recebe os filhos e netos em casa, para visitas, segundo ela, “rápidas”, porque não há casos confirmados de coronavírus na península, considerada bairro de Salvador.“Eu estou muito ansiosa e angustiada”, conta.Ela teve o salário mínimo cortado à metade pelos patrões. Ou seja, sobrevive com uma quantia equivalente a R$ 522,5 - ainda assim, o dobro do rendimento médio em toda a ilha. No último censo do IBGE, eram 720 moradores em Ilha dos Frades.>
A rua onde Luciene mora está esvaziada. Nenhuma embarcação com turistas atraca na ilha, nem os vizinhos saem de casa. Antes da pandemia de coronavírus, ela acordava às 7h e ia a pé para o trabalho de 22 anos, numa casa de veraneio dos Frades. Ilha dos Frades tem menor rendimento de Salvador (Valter Pontes/AGECOM) Quando os patrões chegavam, permanecia no serviço até o final do dia. O corte na remuneração foi anunciado no início deste mês.“Mas eles também disseram que estão com problemas, a gente tem que entender”, defende.Ela é responsável por pagar a faculdade de um dos netos - o custo foi de R$ 250 durante a graduação, mas, hoje, é de R$ 50, porque o rapaz está prestes no último semestre da formação. O valor corresponde a 20% do salário. "Ainda bem que já vai terminar e meu neto vai se formar", conta>
Há pouco mais de uma semana, surgiram as dificuldades para dormir. Pela primeira vez, Luciene revirava-se na cama sem pregar os olhos. A noite era alternada por cochilos, dos quais despertava sempre ao nascer do sol.>
Decidiu ir a uma Unidade de Saúde da Família (USF). O médico prescreveu um calmante natural. “Eu ficava impressionada com tanto problema, preocupada com tanta coisa ruim…comecei a tomar remédio para dormir”, recorda. A preocupação também é com os três filhos, um vigia, outro pedreiro e outra dona de casa. “A gente teme muito”, diz.>
Na mesma semana, retornou à unidade desconfiada da secura na pele e na boca e da perda de peso. Foi diagnosticada com diabetes tipo 1 e enquadrada duplamente no grupo de risco da covid-19.“Eu nunca tive isso, nunca tive problema nenhum. Agora tô ainda com mais medo. Ter que ficar em casa também angustia a gente mais ainda”, conta.Como o médico recomendou que Luciene evitasse assistir ao noticiário o dia inteiro, ela perdeu as contas de quantas horas passa entretida com o crochê. “É o que restou para fazer”, brinca. As caminhadas diárias ao ar livre foram canceladas, mesmo de máscara.>
A descoberta da doença impôs restrições alimentares a Luciene, que cozinha o almoço e arruma a casa diariamente, como os filhos trabalham e tem evitado visitas.>
A preferência, agora, é por frutas e verduras. Os filhos e as noras têm sido responsáveis pelas compras da casa, pagas por Luciene, que desinfetada por álcool antes de organizadas na cozinha.“Também comprei uma máscara de tecido, porque se eu precisar sair”, diz.>
As maiores saudades são os abraços e beijos de uma neta de quatro anos, os lanches preparados para os netos e o encontro com amigos e vizinhos. Às tardes, Luciene gostava de preparar biscoitinhos, bolos e pudim. Se alguém chegasse, tinha merenda.“Os vizinhos são como da família, é um servindo o outro, ajudando o outro”, comenta.A maioria deles trabalha em casas de veraneio, mariscam e pescam ou vivem do turismo, diretamente impactados pela ausência de turistas na ilha. Como Luciene, boa parte deles também teve o orçamento cortado a mais da metade devido à pandemia.>
As mariqueiras e pescadores, por exemplo, não têm a quem vender. As casas de veraneio estão vazias. É uma nova fase na Ilha dos Frades, onde os nativos costumavam papear na calçada, como em cidades do interior. “Ficar em casa o tempo todo é horrível, mas a gente não tem o que fazer”, desabafa. Da janela de casa, Luciene consegue ver o mar. Ela espera que, logo mais, as embarcações voltem a chegar na ilha e seu salário retorne à cifra anterior. "Não tem como guarda nada", brinca Luciene.Mas a espera, segundo ela, é "paciente", mesmo com os contratempos. “Mas [o isolamento tem que acabar] quando for a hora. Para mim, o prefeito [de Salvador, ACM Neto] e o governador [da Bahia, Rui Costa] estão agindo muito bem. Sei que o povo não ajuda, mas tem que ser feito”, opina, por telefone, depois de interomper o crochê.>
Até lá, seu único plano é permanecer saudável para poder receber, outra vez, os beijos e abraços da neta.>