'Vivi um filme de terror', diz jovem baleado 4 vezes após beijar rapaz em bar de Camaçari

Marcelo, que ainda está hospitalizado, teme pela vida da família

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  • Da Redação

Publicado em 25 de outubro de 2019 às 11:45

- Atualizado há um ano

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"Vivi um verdadeiro filme de terror". É assim que Marcelo Macêdo, 33 anos, lembra do seu último domingo, quando recebeu chutes, pontapés e quatro tiros, após beijar na boca o paquera que estava com ele em um bar, no bairro Inocoop, em Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador (RMS). "É difícil acreditar que as pessoas são agredidas tão cruelmente e de maneira tão covarde pelo simples fato de demonstrar afeto. É triste. Dói. Estou despedaçado", escreveu, em uma postagem, em sua rede social.

Desde as agressões, Marcelo já passou por uma cirurgia e permanece internado no Hospital Geral de Camaçari (HGC). No relato, ele diz que nunca tinha imaginado sofrer uma agressão como essa, principalmente em sua cidade. "Eu amo a minha cidade, nasci e me criei aqui. Nem no meu pior pesadelo eu imaginei que um dia pudesse ser tão violentado. Ver a morte de perto é assustador. Nos paralisa", escreveu. (Foto: Acervo Pessoal/Reprodução) Marcelo foi agredido por três homens que estavam no mesmo bar que ele. Embora costumasse frequentar o local ele diz que nunca tinha visto os agressores. Ele diz que está vivo por um milagre. "Sou jovem, tenho uma família, uma vida inteira pela frente e por um milagre de Deus hoje estou vivo, mas quase tive meus sonhos interrompidos de maneira tão vil", comenta, acrescentando que lhe dá força para escrever sobre o fatídico dia é a gratidão pelos  amigos, que sem eles e todas as outras demonstrações de afeto que recebeu não sabe se conseguiria.

Ele diz que o que o encoraja também é o medo. "Só quem já perdeu um familiar ou um amigo conhece essa dor, só quem já esteve de cara com a morte sabe o que estou falando e pode mensurar um pouco do que estou sentindo agora".  Ele conta ainda que tem dormido e acordado em cama de hospital, que de imediato só sabia chorar e chegou a achar que tivesse morto. 

"Não lembrava de muita coisa. Ao abrir os olhos e me dar conta do que estava acontecendo, entrei em estado de choque, mas por incrível que pareça, o hospital é o meu lar agora, é o lugar onde me sinto seguro, protegido, em paz. Não sei como será quando sair daqui". 

Após a titular da 18ª Delegacia, Thaís Siqueira, informar que teve acesso às imagens do bar e estava identificando os autores da tentativa de homicídio, dois dos envolvidos se apresentaram. De acordo com a delegada, as imagens são bem nítidas e mostram, inclusive, o momento em que Marcelo é baleado. Ainda segundo ela delegada, a tentativa de homicídio foi motivada por homofobia. 

Se por um lado Marcelo se sente seguro dentro do hospital, sua maior preocupação e incerteza é quanto aos seus familiares. "Temo pelos meus familiares. Estamos assustados em saber que quem atentou contra a minha vida está solto por aí, sua cara não está estampada em todos os jornais, estando tão vulnerável como eu me encontro agora, botando a cabeça no travesseiro deitado na cama da sua casa e dormindo todos os dias tranquilamente".

Ele disse ainda que esse medo que está sentindo, irá carregar com ele por toda a vida. "Me chamar de 'viado' não é ofensa. Tomar quatro tiros, sim. Uma dor irreparável, além de física, emocional e psicológica. Não sei como será de agora em diante, não sei se serei mais o mesmo. Esse medo que estou sentindo, irei carregar até o fim dos meus dias. Só peço proteção para mim e toda a minha família. Orem por mim", pede, no relato postado em sua página em uma rede social.

Confira o relato dele na íntegra:"Vivi um verdadeiro filme de terror nos últimos dias. Por isso quero iniciar agradecendo todos os meus amigos por me carregarem no colo. É difícil acreditar que as pessoas são agredidas tão cruelmente e de maneira tão covarde pelo simples fato de demonstrar afeto. É triste. Dói. Estou despedaçado. Eu amo a minha cidade, nasci e me criei aqui. Nem no meu pior pesadelo eu imaginei que um dia pudesse ser tão violentado. Ver a morte de perto é assustador. Nos paralisa. Sou jovem, tenho uma família, uma vida inteira pela frente e por um milagre de Deus hoje estou vivo, mas quase tive meus sonhos interrompidos de maneira tão vil. O que me dá força para escrever pra vocês é a gratidão pelos meus amigos, sem eles e sem a todos que me mandaram mensagens de carinho e afeto, não sei se conseguiria. Mas o que me encoraja também é o medo. Só quem já perdeu um familiar ou um amigo conhece essa dor, só quem já esteve de cara com a morte sabe o que estou falando e pode mensurar um pouco do que estou sentindo agora. Dormi e acordei em uma cama de hospital, e só sabia chorar, achei que tivesse morto e desfrutava do paraíso. Não lembrava de muita coisa. Ao abrir os olhos e me dar conta do que estava acontecendo, entrei em estado de choque, mas por incrível que pareça, o hospital é o meu lar agora, é o lugar onde me sinto seguro, protegido, em paz. Não sei como será quando sair daqui. Temo pelos meus familiares. Estamos assustados em saber que quem atentou contra a minha vida está solto por aí, sua cara não está estampada em todos os jornais estando tão vulnerável como eu me encontro agora, botando a cabeça no travesseiro deitado na cama da sua casa e dormindo todos os dias tranquilamente. Me chamar de “Viado” não é ofensa. Tomar 4 tiros sim. Uma dor irreparável, além de física, emocional e psicológica. Não sei como será de agora em diante, não sei se serei mais o mesmo. Esse medo que estou sentindo, irei carregar até o fim dos meus dias. Só peço proteção para mim e toda a minha família. Orem por mim!"

Entenda o caso Marcelo saiu de casa para encontrar com um paquera, na noite de domingo (20), mas o passeio terminou com ele sendo baleado quatro vezes e socorrido às pressas para o Hospital Geral de Camaçari (HGC). O motivo para tanta violência, segundo testemunhas, foi porque Marcelo beijou o namorado em público, o que deixou três homens que estavam no mesmo local descontrolados.    

O crime aconteceu por volta das 23h, em um bar no bairro Inocop, em Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador. “Ele e o rapaz estão se conhecendo, ainda não são namorados. Eles marcaram de se encontrar no bar e estavam trocando carícias quando os homens que estavam em outra mesa ficaram incomodados”, contou uma amiga da vítima que pediu para não ser identificada.

O ápice do incômodo foi quando Marcelo e o outro rapaz trocaram um beijo. Segundo as testemunhas, os três homens foram até a mesa em que o casal estava e agrediram eles, no começo, verbalmente. Marcelo argumentou que não estava fazendo nada de errado e que tinha direito de estar ali, o que enfureceu ainda mais os bandidos.

“Eles agrediram os dois com socos e chutes, até que um dos homens sacou uma arma e atirou em Marcelo. O outro rapaz que estava com ele conseguiu correr e recebeu ajuda. Uma pessoa deu abrigo para ele, mas meu amigo ficou caído no chão do bar. Ele foi baleado quatro vezes”, contou a amiga de Marcelo.

As balas acertaram o braço e o abdômen do jovem. Marcelo foi socorrido às pressas para o HGC, onde permanece internado. Ele passou por cirurgia e, segundo os amigos, o quadro de saúde é considerado estável. Nas redes sociais, eles pediram a ajuda das autoridades para que o crime não fique impune.

“A homofobia, o machismo, o racismo, a intolerância mata todos os dias. Não podemos fechar os olhos, é preciso resistir. A nossa vida é um ato de resistência. Marcelo é meu amigo. Felizmente o estado de saúde dele agora é estável. Mas é inadmissível que crimes como esse aconteçam debaixo dos nossos olhos e passem despercebidos. Vamos encontrar o culpado para que as medidas legais sejam tomadas”, escreveu uma mulher.

Repúdio A Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia (SJDHDS) disse, também em nota, que repudia o ataque sofrido por Marcelo e que acompanha o caso, por meio da Superintendência de Direitos Humanos e da coordenação LGBT. A pasta disse também que está em contato com a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP), para que o episódio seja esclarecido e os culpados respondam pelo crime.

“A SJDHDS reafirma o compromisso do Governo do Estado com a promoção da igualdade, do respeito e da cultura de tolerância. Fatos como este devem ser investigados e punidos exemplarmente”, diz a nota.

Repercussão  Durante o programa Papo Correria desta terça-feira, o governador Rui Costa condenou o ataque, disse que esse não é o Brasil que os brasileiros merecem e afirmou que o caso será investigado com rigor.

“Esse episódio compõe esse tecido que se construiu no Brasil nos últimos anos, de pregar ódio e intolerância nas pessoas. E querer hegemonizar a sociedade na base da força, da violência, do medo e da truculência. Isso merece o nosso total repúdio, e todas as autoridades competentes, policiais, vão agir para entregar, com todos os detalhes, os responsáveis à Justiça. Da nossa parte, temos que continuar repudiando e dizendo que não aceitamos. Esse não é o Brasil que nós merecemos”, afirmou.

A Comissão de Diversidade Sexual e Enfrentamento à Homofobia, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-BA), também está acompanhando o caso.

Desde junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou a homofobia crime. Os ministros determinaram que a conduta passe a ser punida pela Lei de Racismo (7716/89), que hoje prevê crimes de discriminação ou preconceito.

De acordo com a decisão da corte, "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito" em razão da orientação sexual da pessoa poderá ser considerado crime com pena de um a três anos, além de multa. Mas, no caso de Marcelo, soma-se também a tentativa de homicídio.

O Grupo Gay da Bahia (GGB) está acompanhando o caso. O presidente da entidade, Marcelo Cerqueira, também acredita em homofobia e cobrou punição para o crime. A instituição contabilizou 23 homicídios de LGBTs no estado este ano, mas disse que esse número é maior porque nem todos os casos chegam até o GGB.

"Espaço público é espaço de todo mundo, e um beijo não é crime. Isso não deve incomodar porque não é proibido, nem para gays nem para héteros. Um beijo não é motivo para indignação a ponto de alguém fazer isso [atirar 4 vezes] com outra pessoa. O que permitiu essa violência foi a má índole dos agressores e a vulnerabilidade social em que a comunidade vive, com essa sensação de impunidade para crimes desse tipo", afirmou.