Você vai ficar isolado/a, se tiver esse privilégio

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 21 de março de 2020 às 05:10

- Atualizado há um ano

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Entre os primeiros efeitos dessa pandemia, está conhecer mais profundamente quem nos rodeia. Um pente finíssimo, melhor do que qualquer divergência política. Em momentos como este, pessoas grandes ficam imensas. Por outro lado, as minúsculas rastejam. O que dizer, por exemplo, das dezenas de "lideranças" aqui, do Recôncavo da Bahia, onde estou, que apenas compartilham cards e textinhos apavorados, enquanto o vírus circula nas cidades? Especialmente em Cachoeira, São Félix e Muritiba, a maior parte da população segue se aglomerando em feiras e mercados além de festas, procissões, missas e cultos evangélicos, sem qualquer "líder" que tome a frente desse cuidado. É vergonhoso. Por aqui, vai ser bizarro.

Estou quase completamente isolada, desde a semana passada. Isso porque, decidi me adiantar às medidas e decretos, já que tenho o privilégio de trabalhar em home office, desde 2017. A ordem é achatar a curva epidemiológica e o único jeito de colaborar com isso é ficar em casa. Saio só para o imprescindível e, todas as vezes, volto desanimada. Nesta quinta, por exemplo, foi dia de me machucar com a imagem de dezenas de idosos/as absolutamente alheios a qualquer recomendação de recolhimento. Em nenhum lugar por onde passei, vi o carinho que tantos dizem ter pelos seus velhos e, agora, deveria se transformar em cuidado. Cadê filhos/as e netos/as? Os meus pais estão isolados. 

Não estamos nem no começo, mas a minha rede começa a ser montada. Além de meus pais aqui na casa ao lado (apoiando e sendo apoiados), tenho Thai que, calmamente, tira todas as minhas dúvidas, em telefonemas longuíssimos. Também Renatino, com quem troco apoio quase terapêutico, diariamente. Amigos de outros países, contam como é o olho do furação e me ajudam a me preparar melhor ao me adiantar fatos que, inevitavelmente, se repetirão por aqui. O nome de cada gesto desses é solidariedade. A solidariedade dessas pessoas, me deixa mais tranquila e informada para que eu possa também ser solidária.

Eu tô no front da informação, esse é meu foco e trabalho. Mas sempre há algo a mais que se pode e deve fazer. Como fez Priscila que, antes que se começasse a discutir a situação dos informais, liberou a diarista e continua a remunerá-la. O marido de uma amiga dá consultoria gratuita, para que a academia de crossfit funcione, de forma virtual. Um monte de jovens se oferece pra fazer as compras de idosos/as, por todo o país. Foi justamente pra isso que Lana - em vez de voltar para a familia na Bahia - ficou em São Paulo. São muitos os bons exemplos, quero crer que superem os maus.

Não tem jeito. Mais cedo ou mais tarde, você vai ficar isolado/a, se tiver esse privilégio. Podendo, se recolha agora. Agradeça pela sorte de ter uma casa e a possibilidade de um trabalho remoto. Depois disso, olhe pro próximo. Assim como os alunos da escola Girassol, em Salvador, que se juntaram para ajudar Zé, o pipoqueiro que fica ali na frente, desde que pais e mães atuais eram crianças. Ao receber a ligação que anunciava a iniciativa, ele se emocionou e a todos/as porque respondeu "eu não sabia que era importante". Ele é. Todos/as somos e se há uma certeza agora é a de que, quem não consegue ser solidário, cuidar do próximo, acolher as pessoas, num momento como este, na verdade, já morreu. E nem sabe.