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Millena Marques
Publicado em 3 de junho de 2025 às 19:29
Quem passa pela Rua Caetano Moura se depara com mais um dos sinais de vulnerabilidade social de uma metrópole. Aos 47 anos, Mário Sérgio Nascimento faz de um ponto de ônibus na Federação um abrigo. Lençóis estendidos em um varal improvisado formam as paredes, enquanto o banco divide as funções de mesa, cadeira e cama. Vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC), o homem nunca conheceu os pais e chegou a Salvador ainda criança. >
Ele passa a maior parte do tempo no ponto em frente à Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUfba), mas conta que também monta o 'acampamento' próximo ao Alphaville. Em um caldeirão de aço, ele reserva a comida que os pedestres costumam doar. As roupas e os lençóis também são frutos de doação. "As pessoas me dão as coisas", disse à reportagem. >
Mário tem dificuldade na fala, sequela do AVC, mas deixou claro que não busca auxílio de órgãos públicos ao balançar a cabeça repetidas vezes e também disse que nunca conseguiu emprego: "É muito difícil". Ele é um figura conhecida - mesmo que de longe - das pessoas que transitam na região. >
"É triste e cada vez mais comum esse tipo de situação na cidade. Só mostra como os problemas sociais e econômicos estão afetando mais pessoas a cada ano", diz uma estudante da Ufba que passa todos os dias em frente ao ponto. >
"Eu nunca falei com ele nem nada. Quando vou pro ponto e vejo que ele tá lá, fico mais distante porque não me sinto segura mesmo. Esse ponto é sempre muito deserto", diz outra estudante da instituição. O medo é natural quando os índices de violência só aumentam. >
O último censo que apresentava o número de pessoas em situação de rua foi divulgado pela prefeitura de Salvador no ano passado. Os dados são referentes a 2023. Segundo a gestão municipal, foram recenseadas 5.130 pessoas, sendo que, destas, 3.949 são homens, 975 mulheres, 103 pessoas com gênero dissidente (pessoas trans ou travestis) e 103 não responderam.>
Entre os recenseados, 3.265 são pretos, 1.513 são pardos, 208 brancos, 33 indígenas, 15 amarelos e 96 não responderam. A maior parte das pessoas em situação de rua são adultas (18 a 59 anos) e somam 4.175. Os idosos são 479. Crianças somam 275 e adolescentes, 98. Pouco mais de 100 não informaram a idade. A pesquisa revelou também que 1.231 dormem na rua e 770 dormem nas Unidades de Acolhimento Institucional (UAIs).>
Entre os motivos de estarem em situação de rua estão procurar sustento (28,3%), maus-tratos na família (26%), uso de substâncias psicoativas (10,3%), ficou desabrigado (9,1%), morte de algum familiar (3,6%) e outros.>
Procurada, a Secretaria de Promoção Social, Combate à Pobreza, Esportes e Lazer (Sempre) informou que realiza um trabalho individualizado com equipe do Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas), em toda a cidade, das 7h às 22h, a fim de identificar as pessoas em situação de rua e ofertar os serviços e benefícios que a município pode ofertar para auxiliar na superação das vulnerabilidades sociais.>
“O fenômeno da população em situação de rua agrega uma complexidade que extrapola a atuação da assistência social, sendo que no processo de reinserção social destas pessoas envolve além do fortalecimento dos vínculos familiares, a lógica da inserção ao mercado de trabalho formal e informal, da moradia, da saúde e das tantas outras esferas, as quais demandam estas pessoas”, afirma o titular da pasta, Júnior Magalhães.>
A prefeitura também oferece apoio à pessoas em situação de vulnerabilidade através do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, Serviço de Acolhimento Institucional (UAI) e 19 Unidades de Acolhimento Institucional.>
Uma matéria do CORREIO mostrou, em abril deste ano, que pelo menos 14.705 famílias em situação de rua vivem nas praças, debaixo dos viadutos e nas esquinas esquecidas das grandes e pequenas cidades da Bahia. Esse número, que já é alarmante por si só, mais do que triplicou em relação ao ano de 2020, quando o estado registrou 4.289 famílias vivendo nessas condições. Os dados são do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), que compila o número de pessoas em situação de rua incluídas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal. >
É mais do que provável que a quantidade total de pessoas nesse estado de vulnerabilidade ainda seja subnotificada. De acordo com MDS, os números mais baixos registrados em anos anteriores podem não refletir com precisão a realidade da população atendida. Isso porque, de acordo com a pasta federal, houve um desmonte nos processos de atualização e manutenção da base de dados durante a gestão passada.>
“Desde o início de 2023, o Cadastro Único passa por um amplo processo de correção e qualificação dos registros das famílias inscritas. Estima-se que, em dezembro de 2022, menos de 60% da base de dados estivesse tratada. Atualmente, esse índice já se aproxima de 90%”, informou o MDS.>
Mesmo com as subnotificações, o crescimento expressivo de pessoas nas ruas nos últimos cinco anos encontrou outros fatores para além da pouca efetividade no processamento de dados pelo Estado, conforme aponta advogada, pesquisadora e escritora Eugênia Fernandes Bengard, autora do livro ‘Quem Tem Casa é Caracol: População em Situação de Rua em Salvador e o Conceito Jurídico de Moradia’.>
“A pandemia de covid 19 provocou um agravamento da vulnerabilidade e, inclusive, alterou o perfil das pessoas em situação de rua. Na época mais crítica da pandemia, podíamos observar famílias inteiras nas ruas, juntas, pois não conseguiam continuar pagando os seus aluguéis. Até o final de 2022, foi possível observar também um desmonte das políticas públicas, o que também explica esse aumento”, afirma Eugênia.>