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Yan Inácio
Publicado em 11 de agosto de 2025 às 06:00
Normalmente, quando nos machucamos, uma cadeia de reações faz nosso sangue coagular, ajudando a formar aquela casquinha, que protege o machucado e dá chance para a pele no local se recuperar. Pacientes com hemofilia, condição genética rara que afeta cerca de 13 mil pessoas no Brasil, segundo o Ministério da Saúde, não conseguem produzir os fatores responsáveis pela coagulação, e podem sofrer com sangramentos excessivos mesmo ao sofrer machucados simples, além de hemorragias internas espontâneas.
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O tratamento tradicional, feito com infusões para repor os fatores que faltam, - VIII para pacientes com hemofilia tipo A e IX para portadores do tipo B - é disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em centros de referência, mas cuidadores e pacientes relatam dificuldades, principalmente no tempo de deslocamento às unidades de saúde, que consome, em média, de 5h do dia, e nas aplicações intravenosas, em crianças de 0 a 6 anos, 56% das infusões requerem duas ou mais tentativas para serem bem-sucedidas>
Esses dados estão no Mapeamento da Jornada do Paciente com Hemofilia A e B no Brasil, elaborado pela Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia (ABRAPHEM), com coordenação da Supera Consultoria e apoio da Roche Farma Brasil. A pesquisa foi divulgada em um evento com a participação de médicos hematologistas, pesquisadores e pacientes e cuidadores hemofílicos, na última quinta-feira (31), na cidade de São Paulo.>
O estudo, que contou com a participação de 312 pessoas de diferentes regiões do país, entre familiares e pacientes hemofílicos, mostra o tamanho do desafio logístico: apesar de 66% dos participantes realizarem a retirada da medicação mensalmente, 38% relataram já ter enfrentado falta do insumo pelo menos uma vez. Além disso, 21% dos entrevistados moram a mais de 200km do hemocentro mais próximo e 17% demoram mais de 1h apenas para se deslocar até o local. >
Segundo Mariana Battaza, presidente da ABRAPHEM, a descentralização do atendimento é um dos caminhos a serem seguidos para melhorar a qualidade de vida dos pacientes. “A logística na busca da medicação é um peso grande e muitas vezes, uma barreira de adesão ao tratamento. O paciente simplesmente não faz as doses na frequência correta porque ele sabe que não vai poder ir no dia que precisa novamente ir ao hemocentro”, explica.>
As hemorragias podem persistir mesmo com a profilaxia, cuidado preventivo para evitar sangramentos. Enquanto 81% dos adultos entre 18 e 34 anos tiveram três ou mais hemorragias no último ano, a artropatia hemofílica, condição degenerativa das articulações, causada por vazamentos de sangue sucessivos dentro das articulações, afeta até 91% dos pacientes com mais de 45 anos. Joelhos, cotovelos e tornozelos são as partes do corpo mais danificadas.>
“O sangramento pode acontecer em qualquer situação, sobretudo se tiver um trauma, mas uma característica muito peculiar da hemofilia é que o local onde mais acontece é nas articulações e nos músculos. Nas articulações, isso acontece desde a primeira infância e leva a sequelas ao longo da vida, levando muitas vezes à perda da movimentação de uma articulação ou de um membro”, explica Margareth Ozelo, professora e pesquisadora do Hemocentro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). >
Outro ponto também levantado pelos pesquisadores é o impacto do tratamento na saúde mental de quem convive com a doença. A cada 10 adultos, 8 não têm acesso a terapia psicológica e os sintomas emocionais mais frequentes são irritabilidade, insônia e isolamento social, que também atingem menores: 70% dos cuidadores de crianças pequenas relataram interferência significativa na vida profissional e 67% afirmaram que a hemofilia interfere diretamente na dinâmica familiar.>
Além dos diversos percalços que afetam diretamente a qualidade de vida, pacientes com hemofilia A podem ter complicações graves com o tratamento de reposição do fator VIII. Isso acontece quando o corpo começa a gerar inibidores, ou seja, anticorpos que comprometem o funcionamento das infusões sanguíneas. Nesses casos, a principal alternativa é o emicizumabe, medicamento subcutâneo menos invasivo, que dura até um mês na corrente sanguínea e tem resultados mais duradouros que a profilaxia convencional.>
A medicação foi incorporada ao SUS em 2023 após recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) para pacientes com hemofilia A grave e moderada. Mas um parecer desfavorável emitido pela comissão após avaliação impede a distribuição do remédio para cuidadores de crianças de até 6 anos sem inibidor, por conta do “alto grau de incerteza sobre a eficácia da tecnologia nesse público.” >
De acordo com Michelle França, diretora médica da Roche Farma Brasil, fabricante do emicizumabe, a empresa fez uma recomendação para reduzir o custo do medicamento no SUS e gerar R$ 30 milhões de economia aos cofres públicos. “Nessa proposta que a gente fez para o governo, consideramos todos esses custos e trabalhamos numa perspectiva que realmente fosse custo-efetiva para o governo e trouxesse o menor impacto social possível”, disse.>
Veja as fotos da apresentação da pesquisa
Para Mariana Battaza, os dados da pesquisa “trazem toda a legitimidade e argumentam sobre a importância e a necessidade de incorporar esse produto para essas crianças.” Uma consulta pública será aberta pela Conitec para avaliar a disponibilização do medicamento para essa faixa etária ainda neste ano e a ABRAPHEM reforça que cuidadores e pacientes contribuam com respostas ao formulário.>
Até 2025, farmacêuticas como a NovoNordisk, a Sanofi e a Pfizer, devem tentar incorporar novos medicamentos subcutâneos no SUS, segundo Mariana. “São dois anticorpos monoclonais [como o emicizimabe] e um outro é um produto de rebalanço, todos eles subcutâneos com uma frequência de infusão diferente das infusões do fator VIII e que agem numa outra forma da cadeia de coagulação”, explica.>
Outro tipo de tratamento experimental também está sendo estudado. É a terapia gênica, que visa transformar um quadro de hemofilia grave em leve, sem a necessidade de fazer infusões contínuas. Ainda em fase prematura de estudos no Brasil, a terapia é testada no hemocentro da Unicamp. De acordo com Margareth Ozelo, a grande problemática é a variabilidade de resposta dos pacientes. Enquanto alguns têm efeitos prolongados que eliminam as complicações da doença e duram de dez a cinco anos, outros mantêm níveis normais que podem ser classificados como hemofilia leve.>
O jornalista viajou a convite da Roche Farma Brasil.>