Entenda como herança africana no sotaque fez o baiano ‘falar cantando’

Vogal do soteropolitano é a mais “arrastada” do Brasil, segundo pesquisadores do Atlas Linguístico

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  • Gabriel Moura

Publicado em 29 de março de 2024 às 05:03

Paquito Crédito: Paula Fróes

Este texto não tem rimas ou estrofes, mas pode se converter em música caso lido em voz alta por alguém nascido, criado e alfabetizado em Salvador e adjacências. O culpado é um fenômeno já denunciado por Moraes Moreira em seu álbum de 1988 e hoje comprovado por estudos linguísticos e fonéticos: o baiano fala cantando.

“Mais especificamente os soteropolitanos e nascidos na região do Recôncavo”, delimita Amanda Reis, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, ressaltando os variados sotaques que existem no estado e na própria capital.

A primeira marca harmoniosa do baianês são as vogais abertas, especialmente nas sílabas tônicas. Enquanto sulistas falam “leitê quentê” ressaltando o som da consoante “T”, dentre os nascidos próximos ao Equador a letra “E” assume o protagonismo sonoro. Ou o nosso “rolé” que vira “rolê” em bocas sudestinas.

“Sons abertos estão relacionados à falta de interrupção na passagem do ar, deixando a fala de Salvador mais acústica”, esclarece a pesquisadora, citando o Atlas Linguístico, banco de dados que estuda e cataloga os sotaques do Brasil.

Acústica óbvia, mas já censurada em tom xenobóbico. “Daniela Mercury, antes da carreira solo, estava gravando uma música com a palavra ‘abolição’. Ela falava ‘abólição’, mas o produtor corrigia para ‘abôlição’, mandando ela largar o baianês, pois isso ‘não venderia no Rio de Janeiro'. No final, vimos quem se lascou na história”, lembra o produtor musical Paquito.

Comprovado pela tecnologia

Além de abertos, somos longos – lá ele. Analisando através de softwares especializados, os pesquisadores do Atlas Linguístico perceberam que a vogal do soteropolitano é a mais “arrastada” do Brasil.

“Quanto mais longas as palavras, especialmente as vogais, maior a percepção musical. É o caso da palavra ‘rapaaaaz’, gíria clássica da Bahia”, cita Amanda Reis.

Para completar a tríade, eis o “i” fantasma. Antes de “S” ou “Z”, a letra surge na fala mesmo se ausente na escrita. Exemplo: na ‘orquestra’ de São Joaquim, feira onde ecoa o sotaque musical, se diz “deiz horais (de relógio)”, não “dez horas”.

De onde vem?

Os “S” chiados do carioquês são herança do francês mal copiado pela corte portuguesa que “invadiu” o Rio de Janeiro em 1808. Já o apreço por consoantes dos sulistas vem dos imigrantes alemães, falantes de um idioma onde as vogais são raras. E a nossa melodia travestida de sotaque?

“Essas marcas, principalmente o alongamento vogal, é uma herança dos idiomas africanos trazidos pelos escravizados, especialmente o banto, que se difundiram em Salvador”, explica Amanda Reis.

Para onde vai?

Esmiuçado pela rigidez científica, o fenômeno também se comprova pela malemolência do baiano. “A gente leva a vida na flauta, não somos tão estressados quanto o paulista, por exemplo. Temos o nosso tempo, fazemos as coisas do nosso jeito. A forma como falamos reflete esse estilo”, analisa Paquito.

Tranquilos, não preguiçosos. “A famigerada e equivocada ideia de que o baiano é preguiçoso, por várias vezes, está associada ao estereótipo da fala dita cantada. E isso tem sido repetido e repercutido em novelas que insistem em promover personagens caricaturados, que não condizem fidedignamente à realidade, em comentários preconceituosos em reality show, dentre tantas outras situações vividas e sentidas por nós, as quais refletem preconceitos sociolinguísticos, combatidos por diversos linguistas”, alerta a professora doutora Isamar Neiva.

O projeto especial Som Salvador é uma realização do Jornal Correio, com patrocínio da Unipar, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Wilson Sons e Salvador Shopping.