Roberto Barreto, da BaianaSystem: O que será da Guitarra Baiana?

Guitarrista reflete sobre símbolo emblemático da nossa música

Publicado em 29 de março de 2024 às 08:00

Roberto Barreto Crédito: Filipe Cartaxo/@cartaxocopia

Em 2008, ainda antes de ter um projeto que tinha à frente a guitarra baiana, escrevi um texto para o site Overmundo que também trazia uma pergunta como ponto de partida: “O que é que a baiana tem?”, logicamente, numa referência ao clássico de Dorival Caymmi, mas nesse caso relacionando diretamente com o instrumento, que, naquele momento, começava a ter novos olhares, interesses e uma vontade de que, de alguma forma, essa história tão importante fosse recontada. Mais que uma redescoberta, era um momento necessário para que novos caminhos fossem apontados, e um sentido de futuro viesse junto com o seu legado.

Em 2009, quando foi lançado o primeiro disco do BaianaSystem, uma faixa instrumental chamada Frevofoguete (em homenagem à banda Retrofoguetes, que naquele momento também se reaproximava da guitarra baiana) trazia outra pergunta que ficou emblemática na interpretação de Lucas Santtana: “Como serão os futuros carnavais?”, e que Lucas em sua fala, como se estivesse de cima de um Trio Elétrico, prontamente emendou com “O que será da guitarra baiana?”.

As duas perguntas seguem sem uma resposta definitiva, mas soam cada vez mais atuais. A conexão direta da guitarra baiana com o Carnaval, onde ela se desenvolveu não só do ponto de vista do instrumento em si, mas como uma linguagem que traz uma estética, uma sonoridade própria, faz com que esse instrumento criado na Bahia na década de 1940 venha com a força experimental que se pode extrair de uma festa com a dimensão do que tem o Carnaval da Bahia. A influência do frevo, das marchas, do choro, que chegaram através das bandas de sopro do Recife, prontamente se misturam com outro universo rítmico, banhado pelos tambores vindos dos cultos sagrados afrodescendentes e que eram os verdadeiros donos das ruas.

Já é sabido, mas muitas vezes não reconhecido em toda sua grandeza, a importância do tambor, dos instrumentos de percussão aqui desenvolvidos, das baterias dos blocos afro etc. Mas vale aqui também lembrar que o criador desse instrumento, inicialmente chamado de pau elétrico e mais tarde renomeado por Armandinho de guitarra baiana, foi Dodô, um homem negro, inventor e morador da Cidade Baixa, que, com seu conhecimento em eletrônica e sua experimentação, criou também a guitarra de 6 cordas, antes delas chegarem aqui de fora, e construía amplificadores e falantes. Em algumas entrevistas, Osmar faz questão de dizer que o instrumento foi criado por seu amigo Dodô, e que em seguida desenvolveram o carro onde saía a dupla elétrica, que depois virou trio, e mudaram a história do Carnaval. Essa visão amplia a importância da criação deste instrumento e sua conexão com seu povo.

Instrumentos, assim como nós, são meios onde expressamos ideias, são os veículos que nos conectam a uma maneira de falar, um sotaque, uma identidade. E assim como as ideias, precisam se reinventar. A própria guitarra elétrica, que durante anos foi um símbolo ligado ao comportamento de toda uma geração, hoje não tem o mesmo peso de expressão para quem tá surgindo na música. A guitarra hoje tem sua originalidade no cenário pop mundial quando se aproxima de linguagens que tenham uma conexão direta com as formas de falar e se comportar de seus povos, como as guitarras do AfrobeatS nigeriano ou as Desert Blues Tuaregs dos grupos do norte da África. Muitas vezes, as minhas referências para a guitarra baiana se aproximam, por exemplo, mais do berimbau do que da guitarra propriamente, por uma influência direta de eu ter tido o privilégio de tocar com Ramiro Musotto e com Mestre Lourimbau, que entenderam a importância de desenvolver sua linguagem no instrumento e conectar ele com sua cultura local. Muitas vezes tento imitá-los na forma de usar as limitações harmônicas do instrumento para construir novos espaços. Roberto Mendes, mestre do violão brasileiro e dos segredos da chula santoamarense, também traz em seu jeito rítmico de dedilhar, sugestões de caminhos para uma guitarra que dialoga com Angola, Congo e não segue necessariamente o pensamento harmônico modal europeu. Ele é, sim, uma referência para uma guitarra com sotaque baiano. Os caminhos são muitos.

Após esses 15 anos, sinto que essa pergunta continua no ar: “O que será da guitarra baiana?”. Para além do instrumento e sua representatividade para nossa cidade, acredito que a pergunta deva continuar sendo feita constantemente para que - nesse momento único em que a geração que viveu sua criação e foi responsável pelo seu desenvolvimento; a seguinte, que espalhou eletricidade através das muitas duplas de guitarra baiana até os anos 80; a que nessa primeira década dos anos 2000 retomou e usufruiu das novas possibilidades de produção e também da facilidade de divulgação que as redes trouxeram; e a nova, que surge a partir de agora, conviva e possa trocar experiências - a pergunta possa servir de combustível para se entender como pode (juntamente com nossa música e não de maneira isolada) contribuir como uma expressão forte de nossa cultura.

Roberto Barreto é guitarrista da BaianaSystem (@betobarretz)