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Publicado em 15 de setembro de 2025 às 14:41
Chamá-lo de bruxo do som já passou de lugar-comum, mas com o albino Hermeto Pascoal as coisas não parecem mesmo muito distantes da magia. Em três apresentações no fim de semana passado, no Bar Canoa do Hotel Meridien, ele tocou piano, flauta e escaleta, ao lado do pianista Flavio Pantoja. Não é preciso dizer que arrasou nos três instrumentos, natural para quem traça com facilidade qualquer coisa que possa soar como música, de moderno teclado eletrônico até bichos ou sucatas. Simples e direto, Hermeto cobra ao mesmo tempo flexibilidade e coerência aos músicos, e atesta com o seu exemplo: garante que nunca fez concessões, e que ninguém precisa se submeter a qualquer imposição. É o artista Hermeto Pascoal, multi instrumentista e compositor que assombra mais a americanos, europeus e japoneses que a seus próprios patrícios, que conta um pouco da sua atitude diante da música nesta entrevista. E vale um aviso: Hermeto confessa que, em qualquer circunstância, o importante para ele é mexer com as pessoas, "pois o essencial é a comunicação". >
CORREIO - A sua maneira de lidar com a música é famosa por ser livre, por não seguir normas na hora de criar. Como é isso?>
Hermeto Pascoal — É tudo normal, tudo natural, sem preconceito, sem nada. Muita tranquilidade. A gente só cria se estiver tranquilo. Eu não gosto muito desse negócio de rotina, eu gosto de fazer coisas diferentes. Você escuta duas músicas minhas, ou três, parece que são três compositores diferentes. Mas você vê que tem uma essência, a essência do meu trabalho. Então, a criação vem de maneira imprevisível, eu faço tudo para não premeditar essas coisas, porque eu tenho a confiança que vem. E vem sempre muito mais rápido do que eu poderia esperar.>
É uma questão de inspiração, de um momento especial?>
HP - É o que eu estou te falando. Todo momento em que vem a inspiração é justamente aquele que a gente tem que aproveitar. É igual ao primeiro pensamento. Primeiro pensamento tem pouca gente que sabe aproveitar. Às vezes as pessoas falam assim: "poxa vida, eu não fiz isso, se eu tivesse feito teria alcançado isso e aquilo", e é verdade. Então, quando vem qualquer inspiração, eu posso estar no avião, posso estar aqui com você, posso estar no ônibus. Conversando com você, por exemplo, eu estou dando a maior atenção a você, mas eu consigo dividir o meu papo com você, responder normalmente e a minha mente já guardou no cantinho um começo daquilo que eu pensei em fazer.>
Você costuma citar a palavra preconceito. Os músicos têm mesmo este problema?>
HP - Têm muito, não só aqui no Brasil. É no mundo todo. É aquele negócio. Preconceito é fazer da música moda. Música não é moda, não é modismo. Por exemplo, a minha música, fisicamente falando, veio do chão do mato. Então agora parece que é novidade falar em ecologia, falar em meio ambiente, parece que nunca existiu. Sempre existiu, as pessoas é que nem sempre levaram a sério. Qualquer disco meu que você pegar, tá escutando um papagaio, um pássaro, mas também não deixa de escutar um automóvel, um avião, tudo faz parte da natureza. Preconceito existe nisso, quando a gente acha que o som de um caminhão não é um negócio da natureza. Eu acho que é. Tudo para mim, quando começo a fazer, é natural.>
E os músicos que só tocam certos estilos, e ainda com a postura de cultuar o regional, a música brasileira?>
HP - O músico fica desatualizado. Porque ele fala isso, mas bota dólar no bolso, compra uma televisão fabricada no Japão, 80% ou 90% do que ele usa, principalmente instrumentos eletrônicos, vem do exterior. O cara que tá lá no mato, pode ser em Alagoas, na minha terra, pode ser aqui na Bahia, pode ser na Paraíba, que acha que a música é só da Bahia, ou só de Alagoas, ou só do Brasil, tá atrasado. Ele não acredita no poder de comunicação pelos astros. Eu acho que a música vem principalmente do céu para a terra, não nasce da terra para o céu. Ela vem do infinito para a gente. Para a gente se expressar. Por isso que não pode dizer que só toca chorinho. O cara que só toca chorinho é igual ao engenheiro que só faz um tipo de casa. Você acha que o engenheiro que só faz um estilo de casa é criativo? Não é.>
Você toca vários instrumentos, e ainda por cima inventa combinações exóticas, chaleiras, panelas, animais. Seria porque os instrumentos existentes não lhe satisfazem plenamente?>
HP — Não, é porque, por incrível que pareça, todos os instrumentos são tirados disso aí, entende? Os pássaros, qualquer instrumento que você pegue já tem o som de um bicho, de uma coisa qualquer, ou de uma voz humana. Agora, uma chaleira, por exemplo, uma panela, um ovo fritando, aquele som que sai, uma panela fervendo, isso é uma coisa que atrai, justamente porque ninguém imagina que se possa fazer um negócio desses sério, bonito com respeito. E barato, também, porque não dizer. E mais bonito. Eu já desafiei a qualquer cara que venha com os instrumentos mais modernos, eletrônicos, para tocar comigo no palco. E eu não uso nada daquilo, eu desafio. Não em intensidade, mas em som. Bota um microfone pra mim, e aí eu quero ver.>
E o teclado? Pela sua postura, ele ainda não ganhou status como instrumento, não lhe diz muita coisa como instrumento. Você estava criticando a limitação dos timbres dos sintetizadores.>
HP — Eu não quero que ele me diga nada, eu é que tenho de dizer. Eu não posso esperar nada dele. Quando você pega uma bola, ela tem pouco ar mas existe aquele buraquinho. Então se eu quiser jogar e tiver de dar mais ar para ela, eu dou. É a mesma coisa se você pega um teclado eletrônico.>
A impressão que passa, quando se ouve alguém tirando um som de violino, por exemplo, do teclado, é que ele não está sendo tratado como mais um instrumento, novo, mas sim subutilizado.>
HP — Sabe o que é que eu faço? Eu não uso os sons convencionais. Eu aperto. Naquele momento, tá bom, então deixa. Eu gosto mais do som de órgão, mas tem também o de trompete.>
Tudo é mentira, mas é o que eu tou te falando, dá a contribuição dele na hora que você tá junto com o grupo. Agora, para tocar só, não. Fazer um concerto, trazer o bicho para tocar com ele apenas, eu não gostaria não.>
Existe uma predileção sua por algum instrumento?>
HP — Olhe, por exemplo: eu como banana, tem dia que eu quero comer banana, tem dia que é maçã. Eu gosto de todos, agora cada momento eu gosto de tocar com um, com dois. Num show com o grupo eu não faço isso porque não daria tempo, mas eu não acho ruim, porque toquei um ou dois instrumentos, o suficiente para aquele dia.>
Quando você viaja, vai para a Europa e não tem previsão de quanto tempo vai ficar, não leva uma provisão de instrumentos na bagagem?>
HP - Ah, a gente leva tanta coisa. Inclusive nós já temos, lá na Europa, de tudo. Lá tem máquina de costura, tem zabumba, tem chifre de boi, que é o berrante. A máquina de costura eu comprei em Caruaru, ela é antiga, para tocar junto com uma serra velha.>
E os europeus, como recebem estas combinações insólitas?>
HP — Eles ficam radiantes. Eles dizem assim: ‘Como é que uma pessoa só consegue se transformar em tanta gente? Cada música que ele toca é uma história, é um compositor’. Mas é por isso que eu digo que a música é universal.>
Quando você introduz uma máquina de costura na música, você pensa em quê? No tom, no timbre?>
HP — É o som que ela emite, sempre junto com outras coisas. Com serra velha, um pedaço de madeira, um buraco, um barbante, você vai rodando, vira uma hélice, que faz um gemido. A máquina faz um som de locomotiva, aquilo fica muito bonito, eu não vejo muito pelo visual da máquina. É claro que o pessoal olha e vê que é uma máquina e fica admirado, ‘de onde é que tá saindo aquilo lá?’ Mas eu penso sempre no som, naquilo que eu escuto.>
Depende muito de improviso, então.>
HP — É. Tem uma música que nós tocamos agora só com canos de alumínio. Eu peguei uma porção de canos e fui afinando dentro da escala cromática. Saiu um tema tão bonito que tá sendo sucesso. O palco tem de ser de cimento e cada um toca dois canos, ficam 12 instrumentos. Eu fiz o tema em meia hora, mas quem vê aquilo ali, amontoado num canto, não vai dar valor.>
Eu sei dar valor, e fica mais bonito que um instrumento que você compra por dois mil dólares.>
Isso lembra aquela história dos cultuados violinos Stradivarius. Você espera esta perfeição dos instrumentos?>
HP — Eu sempre aconselho para os músicos que, mesmo tendo pai rico, tendo condições de comprar um instrumento bom para tocar, compre e guarde. Mas compre um instrumento mais simples, mais duro de se tocar, para você poder forçar mais. Por exemplo, o cavalo de corrida. Ele tem que correr bem na areia, para treinar os músculos, para arrasar quando vai para a grama. Esse negócio do cara já começar com aquele peso que ele pode levantar, ele vai ficar levantando só aquele peso. O instrumento muito bom, acomoda, impressiona. Você pensa que está tocando muito bem e de repente não está. Você tem de estar preparado para ele.>
Para você, que prega uma liberdade no tratamento da música, qual o mais difícil, tocar uma música inteira em cima do que está escrito ou improvisar?>
HP — Quando está escrito, você precisa de concentração, porque se errar um compasso o outro já não pega mais. Sem ler, você tem de ter aquilo mais ou menos na cabeça, não pode esquecer e tem que improvisar. Fica mais solto porque você não tá olhando o papel. Olhar o papel é chato. Quando decora a música, é como uma porta aberta, você não precisa fechar de novo para abrir, é só passar, escolher a porta que você quer entrar, e improvisar na maneira de entrar.>
Esta é a diferença entre o estúdio e o palco?>
HP — Dentro do estúdio, você se liga mais rapidamente com a parte espiritual. Ao vivo, é como se fosse uma festa mais para nós, na terra. Vem do céu também, mas é rapidamente, e dá um tempo, não fica assim para lá e para cá. No estúdio, a comunicação é direta. Você tá tocando e sentindo os astros, tá tudo ali. Por isso eu sempre digo quando as pessoas me entrevistam: se você vai comprar meu disco pensando que é a mesma coisa que eu faço no palco, não tem nada a ver, é diferente. Tem a ver só a essência.>
Hermeto, você é místico?>
HP - De repente até sou, mas com naturalidade, consciente. Não sou aquele cara obcecado. Todo mundo tem um pouco disso aí.>
Você acha que este dom de tocar com tanta facilidade tem a ver com alguma bênção espiritual?>
HP - Muito. Tá em cima disso. Tudo que aprendi agradeço a isto. Agradeço a Deus, meu professor é o meu dom. Eu aprendo muito sonhando, por isso não sei como explicar tudo que conheço hoje.>
Há esforço para aprender a tocar um novo instrumento?>
HP — Não, eu já ganhei instrumento por isso. O cara vem com aquilo todo empoeirado, eu olho, e quando ele menos espera eu já toquei. Aí o cara me dá o instrumento, por alegria.>
Você incentiva os músicos a aprenderem novos instrumentos?>
HP — Claro, mas é como uma banca de frutas, cada um escolhe uma diferente, e aí por diante.>
E sobre as citações que freqüentemente Caetano Veloso endereça a você nas músicas dele?>
HP — É maravilhoso, inclusive eu ainda não retribui porque penso tanto em retribuir que quando eu penso muito eu não faço. Tá bem próximo de eu retribuir, não sei ainda como. Ele é um cara pelo qual eu tenho muita admiração como poeta. A música dele melhorou bastante. É um grande poeta. A gente se respeita muito.>
Nilson Galvão é jornalista e trabalhava como repórter no caderno Arte e Lazer do Correio da Bahia. Esta entrevista foi feita em 30 de maio de 1990>