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Donaldson Gomes
Publicado em 14 de dezembro de 2025 às 05:00
Não existe outra cidade igual a Lençóis, que se apresenta como o portal de entrada para a Chapada Diamantina. Poderia, tranquilamente, autodenominar-se como uma pedra preciosa. Uma joia criada por condições geológicas únicas, belezas naturais exuberantes e esculpida pelo garimpo – isso mesmo, os dois séculos da atividade econômica tiveram papel central em tudo o que se vê por lá. Em pleno semiárido, o município baiano ostenta fauna e flora típicas da Mata Atlântica, cachoeiras de tirar o fôlego, sítios arqueológicos e rica arquitetura colonial? >
Quando foi proibida pelo governo federal na década de 1990, a atividade garimpeira já tinha cumprido a sua função na pequena cidade em que menos de 6 mil pessoas vivem dentro do perímetro urbano. Nos tempos áureos da atividade, os registros históricos apontam que até 30 mil pessoas chegaram a se aglomerar na região em busca de diamantes, mas este número pode ser até 10 vezes maior, uma vez que a população escravizada não era contada. O casario tombado como patrimônio histórico nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Ipham), desde 1973, foi construído com recursos oriundos da atividade mineral. >
Visite Lençóis: conheça algumas das atrações turísticas na cidade dos diamantes
Foi a lavra garimpeira também a responsável pela abertura das trilhas que hoje encantam pessoas do mundo inteiro. Por estes caminhos, chega-se facilmente a locais como o Parque Municipal da Muritiba, praticamente dentro da cidade, com atrativos como os caldeirões do Serrano, o Salão de areias coloridas, o Poço Haley, que, sim, tem este nome em homenagem ao cometa, além da Cachoeirinha. Ainda no perímetro de Lençóis, sem grandes dificuldades, é possível chegar ao Ribeirão do Meio, à Cachoeira do Mosquito, à Serra das Paridas, à gruta do Lapão, fazer a trilha para o Pai Inácio, visitar o Mucugezinho, ou a cachoeira do Poço do Diabo. E tudo isso no perímetro do município. Quem quiser, pode estabelecer a cidade como base para visitar boa parte dos 24 municípios que compõem a Chapada Diamantina enquanto zona turística, e aí, o tempo e a disposição são o limite para uma enorme quantidade de opções. >
Durante cinco dias em Lençóis, entre 3 e 7 de dezembro, à convite da prefeitura da cidade e do Sebrae Bahia, tive a oportunidade de visitar parte dos atrativos ligados ao ecoturismo, mas também de conhecer parte da rica contribuição histórica que a cidade deu para a formação da Bahia, assim como a sua cultura rica cultura e uma infraestrutura para receber bem visitantes como em poucos lugares do Brasil. >
“A nossa história também é um diamante, também é um tesouro”, diz a empresária Vanessa Almeida, que nasceu em Jacobina, mas há 20 anos adotou a cidade como sua. Quando chegou lá, lembra, decidiu que faria qualquer coisa para nunca mais ter que viver em outro lugar. Abandonou a formação em belas artes, já trabalhou vendendo pão, artesanal e tudo o mais que surgiu como oportunidade, antes de começar a trabalhar para uma agência de turismo, onde encontrou o seu caminho. Quando saiu de lá criou a própria agência, a Nas Alturas, carinhosamente conhecida como “Nasa” – uma brincadeira que ganha um sentido especial porque ajuda turistas a viajarem num mundo completamente novo. >
Vanessa diz que a Nasa surgiu para oferecer turismo de aventura, mas caminha cada vez mais para as chamadas rotas especiais, que abrem espaço para um público mais amplo, além dos mochileiros – que continuam muito bem vindos. >
Em harmonia>
Uma das coisas que mais impressiona nas pessoas que trabalham com o turismo em Lençóis é o quanto a relação entre o ecoturismo e o garimpo é bem resolvida. “Esta é uma cidade garimpeira”, avisa o guia Cleiton Santos, filho da terra e alguém que trabalhou na reta final da atividade mineral, além de dizer com orgulho que é filho e neto de garimpeiros. “Esta cidade foi a rainha no ciclo do diamante e hoje é a rainha do turismo na Chapada Diamantina”, diz, enquanto mostra o mercado municipal, que hoje funciona como um centro cultural da cidade. O espaço foi construído com uma doação de 18 contos de réis feita pelo coronel Felisberto Sá, em meados do Século XIX. No último dia 5, foi palco de um casamento coletivo que emocionou munícipes e visitantes. >
Sem dar um passo, Cleiton aponta para a ponte romana que conecta as duas margens do Rio Lençóis, construída com doação de Dom Pedro II. >
Numa rápida caminhada pela cidade, o guia vai contando a história de prédios que surgiram graças à exploração das reservas de diamantes. Na praça principal, uma das edificações é até hoje conhecida como o “consulado da França”, embora não se saiba de registros oficiais indicando qualquer tipo de representação diplomática oficial do país europeu em Lençóis. Era, na realidade, um entreposto comercial francês para facilitar a aquisição das pedras preciosas, desejadas tanto por sua beleza, quanto pela funcionalidade. Como a liga natural mais resistente de que se tem notícias, é possível imaginar que diamantes produzidos na Chapada foram responsáveis pela construção dos metrôs de Londres e Paris, dois dos mais antigos do mundo, bem como do Canal do Panamá, entre outras grandes obras. >
Michelle Nonato, gestora do projeto de Turismo da Chapada pelo Sebrae Bahia, é filha de Lençóis. Segundo ela, a cidade possui infraestrutura turística e atrativos capazes de recepcionar bem qualquer tipo de visitantes. “Na hospedagem de Lençóis, encontramos opções que vão desde hotéis boutiques a hostels, são equipamentos que atendem públicos muito heterogêneos, de jovens a pessoas da terceira idade”, ressalta. Ela lembra ainda que a cidade tem uma vida noturna bastante diversificada, além de abrigar um aeroporto. >
Michelle acompanhou o período, em 1996, quando o garimpo foi definitivamente proibido em Lençóis. Embora ainda tivesse importância econômica, já não mais o que representou no século anterior. Desde a descoberta de minas de diamante no continente africano, a produção na Chapada vinha em declínio. Graças a movimentos firmes em direção ao turismo, a cidade tinha um norte a seguir, lembra. >
Segundo Laura Garcia, secretária de Turismo de Lençóis, atualmente a cidade é muito bem resolvida em relação ao seu passado, mas nem sempre foi assim. “As pessoas tinham vergonha de dizer que foram garimpeiros, ou filhos de garimpeiros”, lembra. A gestora municipal explica que o trabalho de fomento do turismo no local está muito voltado para o fortalecimento do turismo cultural, ressaltando as atrações históricas e opções gastronômicas, por exemplo. “As nossas belezas naturais se vendem sozinhas, todo mundo quer vir aqui pelas cachoeiras, e essas pessoas são muito bem vindas, mas temos muito mais coisas a mostrar”, diz. >
Na década de 1970, o patrimônio arquitetônico foi tombado pelo Iphan, em 1985, o Parque Nacional da Chapada Diamantina foi criado. Em 1979, o Hotel de Lençóis, construído pelo governo da Bahia para fomentar o turismo na região, foi inaugurado e, três anos depois, vendido para a iniciativa privada. O emblemático estabelecimento segue em operação e foi onde me hospedei nesta viagem. Em 1992, as paisagens de Lençóis e do restante da Chapada ganharam o imaginário de todo o Brasil na novela Pedra sobre Pedra, dando o que pode ser sido o empurrão definitivo da cidade em direção ao turismo. >
Uma certeza que todos em Lençóis possuem é de que debaixo daquelas terras ainda há muito diamante. Um estudo da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) dando conta de que apenas 30% da reserva foi garimpada é constantemente citado. Entretanto, prevalece hoje a consciência de que a produção de diamantes pode destruir a verdadeira riqueza de Lençóis. >
O pesquisador americano Roy Funch, que teve papel central na criação do Parque Nacional, acha que a cidade se tornou “um pouco barulhenta” desde que ele chegou por lá. Mas é um barulho bom, acredita. “O ecoturismo se desenvolveu voltado para a população local, é um movimento bom para todo mundo”, diz. >
Pré-história>
Pertinho da Cachoeira do Mosquito, em Lençóis, há um tesouro arqueológico. A Serra das Paridas guarda um rico conjunto de pinturas rupestres e possui comprovação da presença humana há pelo menos 8 mil anos. Uma visita ao local pode ser uma opção para quem quer ter contato com achados arqueológicos, ou mesmo para intervalar um período de trilhas. O acesso é fácil e rápido, mesmo num dia de chuva, como foi o que estive lá. >
O guia Renato Hayne, que se apresenta como “guardião da Serra das Paridas”, diz que o nome do local se dá porque era para onde as vacas fugiam antes de dar a luz. Nas paredes, é possível ver com clareza desenhos de formas geométricas e figuras que lembram pessoas. Segundo ele, apesar de não ser possível datar as figuras, já existe comprovação de que elas são pré-históricas. Elementos de uma fogueira, encontrados numa escavação, têm idade estimada em carbono 14 de pelo menos 8 mil anos. >
Outro detalhe pré-histórico em Lençóis aparece numa rocha que compõe a balaustrada no leito do Rio Lençóis, na orla da cidade. Com apenas um QR code indicando o local, furos arredondados no piso são apontados como resquícios de uma chuva de granizo que aconteceu há quase 2 bilhões de anos. Os chamados “fósseis de granizo” são muito raros e só existem outros três em todo o mundo. As marcas em Lençóis são as mais velhas conhecidas, as mais bem preservadas e as únicas na América Latina, além de estarem acessíveis na calçada. >
Visite Lençóis: conheça algumas opções para se hospedar e comer bem na cidade dos diamantes
Memórias que alimentam>
No início deste ano, a chef Katiana Alves, do Sabor da Serra, em Lençóis, participou de um concurso culinário que exigia um prato harmonizado com cerveja, ou que tivesse a bebina incluída em seu preparo. Preferiu incluir uma cerveja que é produzida em Lençóis entre os ingredientes da comida. Não deu outra, venceu em primeiro lugar com o emblemático Lembranças de Mainha, um surubim assado na folha de bananeira, acompanhado ainda de um feijão fradinho e arroz com licuri. >
Os sabores são incríveis, mas a história do prato consegue ser ainda mais impactante. Katia perdeu a mãe aos 9 anos e praticamente não se recorda do rosto dela. "Eu guardo com muito carinho a lembrança dela fazendo este prato", aponta para o peixe, que era facilmente encontrado no Rio São Francisco e que, por muito tempo, foi comida de pobre. >
"Eu lembro bem do peixe numa folha de bananeira, em cima de uma telha, num fogão a lenha", conta. Hoje, no Sabor da Serra, a diferença no preparo que encanta todos que provam é só o fogão a lenha. >
Se o surubim, homenageia a mãe, o arroz com licuri, presente também na moqueca de Katia, é homenagem ao pai, que era feirante em Xique-Xique. "Ele colocava a gente para ficar quebrando os coquinhos, para nos entreter quando chegava cansado, já que não existia celular naquela época, para poder namorar", conta. >
Em 2023, a chef Katiana Alves participou do primeiro concurso para a escolha da melhor moqueca da Bahia e ficou em terceiro lugar com uma moqueca vegana. "Eu trouxe o prêmio de terceira melhor moqueca com uma de caju", lembra. "Para a gente foi como um primeiro lugar", lembra. >
Na noite do dia 6 de dezembro, ela serviu os dois pratos, junto com o seu risoto baiano, feito com caldo de abóbora, coentro e carne de sol desfiada, reduzida em cachaça regional. Ouviu de parte dos convidados que deveria levar a sua culinária para São Paulo. Mas com o mesmo sorriso do restante da noite, avisou que Lençóis é o seu lugar. Vai seguir lá encantando as noites de quem passar pela lendária Rua da Baderna. >
O serviço da chef foi certamente o ponto alto das visitas gastronômicas a Lençóis, mas não foi a única boa experiência que trouxe de lá. No El Jamiro, na mesma Baderna, que apesar do nome é super tranquila, a proprietária Laura Gualtruzzi deixou a rotina diária na cozinha, mas ainda é quem assina o cardápio, que define como uma mistura entre a culinária argentina e baiana. A picanha argentina com batatas rústicas e a salada crua adocicada por pedaços de manga é um espetáculo. E Laura é a gentileza em pessoa. >
No Arte e Sabores, o cardápio vem recheado de história, com ambientes agradáveis tanto na área interna, quanto externa. No Garimpo Gourmet, tem até moqueca, mas a carne do sol com crisps de cebola é o que rouba a cena. O Fundo de Quintal tem a opção self service e a la carte. Vale a pena pedir a torta de mangaba. >
Hospedagens>
Mesmo tendo morado por alguns anos em Seabra, talvez a menos turística cidade da Chapada Diamantina, a última vez que tinha ido a Lençóis passear foi em 2016, com a família. Agora, no retorno à cidade, quis o destino que me hospedasse no mesmo hotel da viagem anterior. No alto da cidade, o Hotel de Lençóis, permite aos seus hóspedes vista privilegiada de boa parte da região. Com opções de hospedagem a partir de R$ 400 a diária, dependendo da época do ano, é capaz de oferecer espaços para famílias, a partir de R$ 800, ou o requinte de uma suíte para casais apaixonados com piscina aquecida e fonte, com diárias a partir de R$ 1,7 mil por dia, que chegam a R$ 2,3 mil na alta estação. Para o Réveillon, o pacote de cinco dias sai por R$ 20 mil e a suíte ainda estava vaga até o último dia 7. >
Mas com uma estrutura que vai de hostels a hotéis boutiques, passando por charmosas pousadas, Lençóis consegue hospedar quem quiser ficar por lá. Laura Garcia, secretária de Turismo de Lençóis, diz que a cidade possui mais de 200 estabelecimentos de hospedagens cadastrados, além de 70 agências de viagens e mais de 400 guias de turismo. “Mais de 80% dos estabelecimentos econômicos que temos aqui são voltados para o turismo”, estima. >
João Jasmin, o Jonga, é um dos proprietários do hotel Canto das Águas, estabelecimento que integra o Roteiro de Charme e tem uma forte pegada de sustentabilidade ambiental. Segundo ele, demorou para que a população se conectasse ao turismo. “Hoje finalmente a gente percebe um sentimento de pertencimento do povo, as pessoas entendem o quão preciosa esta cidade é”, avalia. >
Na Pousada Vila Serrano, construída com tijolinhos que foram fabricados pelo próprio dono, quem busca um contato próprio com a natureza, vai se sentir completamente em casa. Já na Casa da Geléia, além do contato com a natureza, os visitantes têm a possibilidade de observar de perto algumas das espécies de pássaros mais comuns na região. Outra opção é o Hotel Terra dos Diamantes, construído recentemente, que é uma opção para quem gosta de um ambiente mais clean e moderno.>