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Donaldson Gomes
Publicado em 23 de setembro de 2025 às 06:00
Imagine assinar um contrato de longo prazo para o fornecimento de um produto, que demanda investimento intensivo, e perceber no meio do caminho que o contratante só vai adquirir uma parte daquilo que ele se comprometeu a comprar de você. A grosso modo, este é o dilema por trás de expressões complexas utilizadas no setor elétrico, como o constrained-off, que é quando a geração de energia é temporariamente limitada, ou até mesmo interrompida, quando acontece o curtailment. Estas duas expressões em inglês colocam em xeque o futuro da indústria renovável no Brasil, que chegou a ser apresentada há alguns anos como um dos caminhos para a redenção do sertão nordestino. >
As interrupções de produção, que são determinadas pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), estão trazendo prejuízos que ultrapassam cifras bilionárias há alguns anos e chegaram ao ponto em que podem inviabilizar o desenvolvimento da geração de energia eólica e, principalmente, solar no país. Um exemplo claro do tamanho deste problema pode ser percebido em um relatório da consultoria ePowerBay ao qual tive acesso. Os parques instalados na Bahia registraram perdas acima de 20% nos últimos três meses, chegando a 23,2% no último mês de agosto, que foi o segundo pior do ano, atrás apenas de fevereiro, quando o volume médio chegou a 42,7%.>
Em termos financeiros, entidades que representam os setores eólico e solar estimam prejuízos na casa dos R$ 6,6 bilhões só em 2024 e 2025 com as interrupções na geração de energia. >
Os cortes de geração que têm ocorrido no Nordeste estão atingindo médias entre 25% e 30% da geração prevista para empresas produtoras de energia eólica, a depender dos meses, explica Elbia Gannoum, presidente executiva da Abeeólica, entidade que representa as eólicas. “Em algumas empresas esse corte está chegando até 60% e até a 70%. Então, as empresas que têm seus parques instalados, que esperam ter um rendimento a partir de investimentos que foram feitos, estão chegando numa situação que elas não estão conseguindo nem pagar os bancos”, ressalta Elbia. >
Além de provocar um prejuízo financeiro gigantesco para as empresas, o cenário arranha a credibilidade do país em algo que o mercado não costuma perdoar: a sua credibilidade. “Isso atrapalha muito o desenvolvimento da indústria porque o país perde credibilidade, na medida em que ele atrai investimentos e agora não está oferecendo a taxa de retorno que estava prevista”, acrescenta a presidente da Abeeólica. “Este cenário é muito ruim principalmente para o estado da Bahia, que é o maior produtor de energia eólica hoje”, completa. >
Segundo ela, as discussões com o governo federal atualmente giram em torno de soluções no curto, médio e longo prazo. “Hoje o nosso maior problema não é a infraestrutura de transmissão, que não responde nem mesmo por 10% dos cortes. A questão é que estamos com uma sobra de energia, principalmente entre as 10h e as 14 horas”, diz. É o horário de pico na geração de energia solar distribuída, que é a produzida normalmente nos telhados. >
Elbia lembra que houve enormes investimentos na chamada GD nos últimos três anos, fazendo com que ela ultrapassasse a capacidade instalada de geração eólica, construída ao longo de 15 anos. “O governo está sensível ao problema e deve buscar, sim, uma solução. E nós estamos trabalhando para ter essa solução e promover mais investimento para o Brasil”, diz.>
Acontece que nem todos que acompanham a evolução do setor energético no Brasil são tão otimistas quanto a presidente da Abeeólica em relação a um desfecho positivo e em breve para o problema. Um representante do setor, que prefere não se identificar, lembra que os cortes de geração já causaram prejuízos irreversíveis para a indústria de energia renovável no Brasil. >
“Para o consumidor não importa muito a origem da energia, se vem de um parque eólico ou solar, ou se está saindo de um local de geração distribuída, mas para o governo isso deveria importar porque foram assinados contratos com investidores nacionais e internacionais e estes compromissos não estão sendo respeitados”, pondera. “O gerador de energia fez compromissos de longo prazo, assumiu financiamentos com base em uma receita que não está se confirmando, porque há 20 anos, ou mesmo há 10 anos, quando os contratos foram assinados, o problema da DG ainda não existia”, completa. >
Com os 25 gigas de capacidade instaladas de GD que entraram no país nos últimos três anos, a matriz já se aproxima dos 40 gigas no total. A estimativa no mercado é que só este ano devem entrar mais 8 gigas. “Não temos tido novos projetos nos últimos anos e enquanto não houver uma solução para este impasse, não teremos novos”, projeta o especialista.>
Segundo ele, o problema não são os pequenos consumidores que instalam placas solares no teclado de suas casas, mas empreendimentos que se apresentam como pequenos, apesar de capacidades acima de 5 megas – o suficiente para abastecer quase cinco mil residências. “Quem sustenta expansão da infraestrutura elétrica, principalmente de transmissão, são os grandes empreendimentos, se eles cessarem, haverá uma estagnação”, projeta. >
Na última semana, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) se reuniu com o ONS e distribuidoras de energia para discutir medidas de controle sobre a geração distribuída. Até onde se sabe, ninguém encontrou ainda um caminho para regular a atividade. >
Outro especialista no setor, que também fala anonimamente, acredita que o prejuízo para a Bahia é maior do que para o restante do país. “Como produzimos mais, sofremos mais”, acredita. O estado é grande exportador de energia para outras regiões do país. Como há sobra nas outras regiões e a dinâmica econômica baiana é insuficiente para consumir o que se produz por aqui, o volume de cortes é maior. >
Este cenário fez grande parte da cadeia de fornecimento instalada no estado fechar ou operar com capacidades muito reduzidas. Empresas como a GE, Siemens Gamesa e Tecsis fecharam, ou passaram as unidades para outras empresas. >
Programas de estímulo ao consumo de energia por aqui podem ser alternativas interessantes, como a geração de hidrogênio verde, ou a implantação de data centers – ambos consumidores intensivos de energia. Recentemente, o governo federal lançou um plano para fomentar o desenvolvimento de data centers no país. Já existem notícias de planos em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Alguma coisa por aqui?>
Imaginar que o governo seria capaz de limitar o desenvolvimento da geração distribuída, ou que ele tenha interesse em fazer isso, com toda a impopularidade que a medida traria, não faz o menor sentido. A GD é uma realidade. Mas numa economia de mercado, como a que se imagina que o Brasil é, contratos assinados deveriam ser sagrados. Obrigar o investidor a arcar com o prejuízo da falta de planejamento no setor elétrico pode ser a ruína de uma das poucas atividades econômicas que sempre funcionaram bem por aqui. >