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Flavia Azevedo
Publicado em 23 de agosto de 2025 às 12:59
Quando a gente pensa em herança, logo vêm à mente imóveis, carros, joias de família e, no máximo, aquele faqueiro herdado da avó. Mas e o grupo do Zap com os primos, a coleção de selfies na nuvem e a carteira de criptomoedas esquecida numa exchange? Pois é, seu legado também está nas nuvens digitais, e decidir quem terá acesso a isso não é uma problema do futuro: o Judiciário brasileiro já se vê obrigado a lidar com esse novo tipo de bem. Sem legislação específica, os tribunais têm inventado soluções criativas - e às vezes controversas - para dar conta do chamado “espólio digital”. >
Em 2023, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se viu diante de um caso emblemático. A relatora, ministra Nancy Andrighi, trouxe para a pauta a ideia do “inventariante digital”, após analisar o pedido de uma mãe cujo filho havia morrido em um acidente aéreo, em 2016. Naquele momento, ela queria acessar o computador do filho para encontrar documentos financeiros e também lembranças afetivas, como fotos. O problema? Abrir o HD inteiro equivaleria a dar passe livre para a intimidade, sem filtros, do falecido. A 3ª Turma do STJ reconheceu o dilema e decidiu inovar.>
Daí nasceu a proposta do “inventariante digital”, um profissional nomeado pelo Judiciário, com formação técnica e credibilidade, que teria acesso restrito ao conteúdo. Ele faria um levantamento detalhado, relataria o que fosse patrimonialmente relevante e preservaria o que fosse íntimo ou irrelevante para a sucessão. O objetivo era duplo: garantir que bens de valor não se perdessem e, ao mesmo tempo, proteger a dignidade póstuma. Nas palavras da ministra Nancy, não se pode confundir patrimônio com “exposição da vida privada de alguém que já não pode se defender”.>
No Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), um processo expôs mais do problema. Em um inventário, um herdeiro pediu acesso total às contas e dispositivos Apple do falecido. O TJMG recusou. O acórdão destacou que a herança digital abrange bens de valor econômico, mas não transforma automaticamente a intimidade em bem transmissível. Ou seja, não se pode abrir mensagens, fotos e arquivos pessoais sob a justificativa de “patrimônio”. O tribunal reforçou que os direitos da personalidade são intransmissíveis e protegidos pelo artigo 5º da Constituição, inclusive depois da morte. Assim, o direito à memória se sobrepõe à curiosidade de qualquer um de nós.>
Se os tribunais lidam com dramas individuais, o caso de Marília Mendonça mostrou a escala pública e econômica do problema. Com perfis em redes sociais seguidos por milhões de fãs, contratos de publicidade e direitos autorais de músicas, o inventário da cantora envolveu não só bens materiais, mas também a gestão de seu legado digital. O tema ganhou repercussão nacional porque evidenciou a mistura de duas dimensões: o valor econômico (monetização de perfis, direitos de imagem, streaming) e o valor simbólico (memória afetiva, relação com fãs). A “herança digital”, nesse caso, deixou de ser “apenas” privada e se tornou uma questão coletiva.>
A “herança” digital também provoca dilemas filosóficos. O juiz Marcelo Milagres, do TJMG, fez um paralelo entre o diário manuscrito de Anne Frank e nossos e-mails privados. O pai de Anne publicou seus escritos, transformando-os em patrimônio da humanidade. Mas e se, em vez de diários em papel, Anne tivesse deixado caixas de entrada cheias de mensagens? Será que deveríamos abri-las e publicá-las? A analogia mostra como a forma de registrar nossa intimidade mudou e como, eventualmente, o Judiciário precisa decidir entre memória coletiva e respeito à privacidade.>
A verdade é que o Brasil ainda não tem uma lei que regule de forma clara o que acontece com os nossos bens digitais após a morte. Cada tribunal vai improvisando com base em princípios constitucionais, no Código Civil e, agora, em soluções como o “inventariante digital”. Isso gera uma espécie de jurisprudência experimental, onde cada decisão serve como “ensaio” para as próximas. Enquanto isso, famílias ficam sem saber se vão poder acessar ou não as senhas do ente falecido, e empresas de tecnologia seguem sem um protocolo unificado para lidar com contas inativas.>
Em Brasília, há projetos de lei tramitando para regulamentar a “herança digita”, incluindo propostas que tratam de perfis em redes sociais, criptomoedas e até contratos de serviços em nuvem. Enquanto isso, algumas plataformas já oferecem mecanismos específicos: o Facebook permite indicar um “contato herdeiro”, o Google criou a ferramenta de “Gerenciador de Conta Inativa” e o Instagram já transforma perfis em páginas memoriais. Todo o resto segue entre o avanço tecnológico e a lentidão legislativa. Por enquanto, o garantido é cada um resolver se prefere deixar documentado o destino desses “bens” ou confiar que seus memes, figurinhas, mensagens secretas e bitcoins vão cair em boas mãos. E você? Já decidiu quem vai herdar seu Zap e suas redes sociais?>
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