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Agência Correio
Publicado em 6 de setembro de 2025 às 10:00
Na rua, no banheiro ou na cozinha, quem encontra uma barata jamais considera estar em boa companhia. Mas, para pesquisadores do Instituto de Biociências (IB) da USP e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma aliança inesperada com o inseto pode ser a chave para encontrar uma matriz energética mais limpa. >
O estudo inédito no Brasil investigou o eficiente sistema digestivo da barata-americana (Periplaneta americana), comum em ambientes urbanos. O objetivo foi entender como o animal, que se alimenta de uma vasta gama de matéria orgânica, é capaz de digerir de forma tão completa. >
Soluções baratas contra as baratas
Os cientistas descobriram que o processo enzimático da barata, se replicado em escala industrial, pode otimizar a produção de bioetanol, o biocombustível de cana-de-açúcar.>
Isso significa mais eficiência e menos impacto ambiental, pois a tecnologia permite aproveitar melhor o bagaço da cana. Com isso, seria possível reduzir custos e o espaço necessário para o plantio, fazendo com que essas áreas possam ser ocupadas por florestas.>
As baratas são conhecidas como detritívoras, ou seja, se alimentam de "restos" da natureza. Apesar de serem consideradas sujas, elas têm o importante papel de "faxineiras" dos ecossistemas. >
A dieta variada e a capacidade de processar diferentes alimentos fez com que desenvolvessem um sistema digestivo "coringa" ao longo de milhões de anos. Essa característica foi o foco do estudo.>
O pesquisador Marcos Buckeridge, do Departamento de Botânica da USP, explica, ao Jornal da USP, que o objetivo do estudo era entender quais enzimas e quais estruturas da barata atacavam a biomassa, a matéria orgânica utilizada como alimento. >
Com essa compreensão, é possível identificar funções metabólicas que podem ser adaptadas para uso industrial. Essa abordagem, conhecida como biomimética, é baseada na observação da natureza.>
“Com isso, teríamos uma potência muito maior de degradação da biomassa para produção do etanol”, ressalta Buckeridge. O estudo abre a possibilidade de aumentar a eficiência e reduzir os custos de produção, o que aceleraria a degradação da biomassa. >
Segundo o pesquisador, "aprimorar a tecnologia e melhorar a extração energética da cana reduz o espaço necessário para plantio – e essa área pode ser ocupada por florestas".>
O objetivo dos cientistas não é criar usinas lotadas de baratas. Ednildo Machado, professor da UFRJ e coautor do artigo, esclarece ao Jornal da USP que: "O objetivo é entender como elas fazem uma digestão tão completa para que possamos reproduzir isso em escala industrial". >
Segundo ele, a proposta dos pesquisadores é usar essa capacidade de forma sustentável para enfrentar o desafio de traduzi-la para a indústria.>
A tecnologia desenvolvida no Brasil transforma a celulose do bagaço de cana-de-açúcar em açúcar, que depois vira etanol. Segundo os cientistas, o desafio para reduzir a emissão de poluentes é a viabilidade econômica, já que as alternativas verdes tendem a ter um custo muito alto.>
A replicação do coquetel de enzimas do trato intestinal das baratas pode acelerar e aumentar a eficiência da produção, diminuindo o custo final. "Se conseguirmos produzir mais etanol de forma mais barata, poderemos produzir mais em menos área", destaca Buckeridge.>
O processo de digestão das fibras da cana nas baratas acontece em quatro etapas. O professor Machado explica que "o intestino da barata é como uma linha de produção: cada parte tem uma função específica para triturar, degradar e aproveitar ao máximo o material".>
Primeiro, as fibras são trituradas pelos “dentes” de quitina. Em seguida, as enzimas quebram a biomassa em uma câmara digestiva. Por fim, as bactérias finalizam a digestão. É essa sequência, aperfeiçoada pela seleção natural, que os cientistas querem reproduzir na indústria.>
Os próximos passos da pesquisa envolvem o estudo de outros insetos, como cupins e tenébrios. Os cupins, por exemplo, degradam quase 90% da celulose e podem trazer novas possibilidades para o mercado.>
*Texto escrito por Julia Teixeira>