Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Maria Raquel Brito
Publicado em 11 de dezembro de 2025 às 06:00
Um grupo de jovens hippies cabeludos, conhecido como “A Tribo”, luta por pacificação e liberdade na sociedade norte-americana dos anos 1960 em meio à Guerra do Vietnã. Esse é o enredo de “Hair”, clássico musical de 1967 que ganhou montagens internacionais e versão no cinema. Agora, a trama ganha outra cara: a “tribo” é soteropolitana e, da dramaturgia à trilha musical, a montagem incorpora elementos do contexto baiano. A adaptação é obra da Escola de Teatro da UFBA e estreia neste sábado (13) no Teatro Martim Gonçalves, com sessões às 16h e 19h. As apresentações seguem nos dias 14, 18, 19, 20 e 21 de dezembro. >
A montagem, dirigida por Edvard Passos, reúne um elenco jovem, de artistas em formação. Segundo o diretor, a inspiração veio do contato com outros trabalhos pré-formatura dos atores, que o surpreenderam pela qualidade técnica e artística e pelo comprometimento profissional. >
'Hair' ganha versão baiana
“É um grupo raro e, como se diz no popular, com ‘sangue no olho’. Então, tive essa intuição de que eles podiam dar conta de um grande desafio. Como minha chefa, Hebe Alves, já havia me designado para missão de dirigir a montagem final, fui pra casa com a cabeça fervilhando, pensando em mil possibilidades, mas uma imagem tribal, irreverente e despudorada já havia se fixado em minha mente ao ver ‘Ubu Rei’. E ‘Hair’ é isso: uma tribo”, conta.>
Interdisciplinar, a peça une músicos, coreógrafos, atores, técnicos e estudantes de diferentes áreas em um mesmo projeto artístico. Além da Escola de Teatro, participam da produção as escolas de Música, Dança e Arquitetura da UFBA. >
Trazer “Hair”, ambientada originalmente em Nova York, mais para perto dos espectadores baianos foi uma saga à parte, como define o diretor – tanto que o diretor só conseguiu acabar de trabalhar nisso no último domingo (7). Mas, valeu a pena: ele sustenta que era um trabalho necessário para manter o público conectado à história, porque as referências específicas à cultura norte-americana no texto original eram “muitíssimas e dificílimas de contextualizar”. >
“Vocês vão notar menções à Tropicália, Caetano, Gil, Bethânia, aos Novos Baianos, à Raul Seixas, Glauber Rocha, até Gerônimo Santana, meu compadre, dei um jeito de inserir numa cena dedicada à Cabocla. Mas, a cena mais desafiadora de transpor de Nova York para Salvador foi a viagem lisérgica coletiva da tribo que faz uma revisão histórica decolonial das guerras norte-americanas. Ali, eu tive de incomodar um monte de gente: Milton Moura, Alberto Pitta, Jamile Borges para encontrar equivalências nos nossos conflitos históricos. E haja Maria Quitéria, Maria Felipa, Dois de Julho, Malês. E mais que isso já é spoiler”, diz.>
O texto-base é outro diferencial: é uma versão escrita em 1966, que precede as modificações que levaram o musical ao sucesso off-Broadway (quando estreou, em 1967) e, posteriormente, à Broadway (1968). Nesta montagem, “Hair”, que marcou o mundo do teatro pela presença da nudez em cena e pela mensagem de libertação, ganha um tom ainda mais cru e selvagem, afirma Edvard Passos.>
“Em geral, as pessoas conhecem uma versão atenuada de ‘Hair’. No filme, por exemplo, a violência está no mundo lá fora que trava guerras absurdas como a guerra do Vietnam. No ‘Hair’ de 1966, a violência também está presente no interior da tribo, em especial a violência contra a mulher, que é a mais urgente pauta que discutimos no Brasil de hoje. (…) Se por um lado as modificações para Broadway tornaram ‘Hair’ mais comercial e palatável, por outro, algumas pautas foram evitadas e as personagens sofreram também enfraquecimento em seus objetivos.”>
A versão de 1966 tem mais espaço para aprofundamento das personagens e exploração de suas complexidades, além de ser um texto com mais cenas dramáticas, que é o centro de formação da Escola de Teatro da UFBA e tornou a montagem mais exequível. O texto foi uma descoberta do processo. Pesquisando por versões menos “datadas”, Passos chegou a trabalhos acadêmicos sobre o musical. Encontrou o texto nas referências bibliográficas de uma tese, dentro de uma publicação chamada Great Rock Musicals, organizada por Stanley Richards. >
Para Cláudio Cajaiba, diretor da Escola de Teatro da UFBA, montar “Hair” quase 60 anos depois da estreia continua sendo um ato de natureza escandalosa. Segundo ele, a relevância de montar uma obra tão provocativa e desafiadora como essa está exatamente na abertura que a adaptação baiana adotou: de trazer para a cena pautas essenciais contemporaneamente, como cosmovisões de povos originários e afrodescendentes. >
“A pauta identitária pode ser vista no texto original, mas carecia e muito de atualização, o que foi feito pelos corpos, vozes e mentes dessas 17 pessoas, estudantes do bacharelado em interpretação, tão distintas entre si. A direção do espetáculo abraçou e incentivou ainda o discurso sobre gênero, reforçando não apenas o combate ao racismo, mas também ao machismo. E continua, evidentemente, no combate ao autoritarismo, ao militarismo, ao conservadorismo, à exploração e à mercantilização, entre tantas outras importantes discussões da versão original”, afirma. >
O diretor da faculdade defende que a participação de artistas com carreiras consolidadas e reconhecidas eleva muito o nível de uma montagem de graduação — o que é, em sua percepção, parte de uma tendência da Escola de Teatro de produzir resultados artísticos de sucesso, o que ele descreve como um “fenômeno impressionante”. >
“Quase a totalidade das montagens do último semestre, tanto do curso de interpretação como de direção estão dando o que falar, lotando os espaços onde se apresentam. E esse elenco de Hair faz parte dessa geração tão promissora, que reaqueceu como nunca a arte da presença, a arte do teatro”, diz. >
O próprio Cajaiba tem um papel na montagem. Ele interpreta o Pai, um personagem arquetípico que representa, junto com a Mãe (interpretado por Camila Odô Labá) a geração anterior e antagonista à tribo. Para ele, que há exatamente 30 anos fazia sua estreia na Escola de Teatro, com a mesma idade que a maioria do elenco tem agora, a participação pode ser descrita em uma palavra: renovação. >
“Participar de uma experiência como essa é ter a exata dimensão das necessidades da Escola, tanto do ponto de vista das suas precariedades como das suas potencialidades. E isso me ajuda muito no papel de gestor e me revigora enquanto artista e enquanto pessoa.”>