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Quase 6 mil meninas de até 14 anos deram à luz na Bahia após estupro

Em cinco anos, apenas 55 crianças tiveram acesso ao aborto legal; especialistas alertam que projeto em tramitação no Senado pode dificultar ainda mais o atendimento das vítimas

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 9 de novembro de 2025 às 23:58

Menos de 1% das crianças vítimas de estupro na Bahia consegue fazer aborto legal
Menos de 1% das crianças vítimas de estupro na Bahia consegue fazer aborto legal Crédito: Pexels

Quase seis mil crianças e adolescentes com idades entre 10 e 14 anos deram à luz na Bahia, nos últimos cinco anos. Todas foram vítimas de estupro de vulnerável, de acordo com a lei brasileira, que estipula que não há consentimento nessa idade. No entanto, o número de registros oficiais de violência sexual nessa faixa etária é menor - pouco mais de 3,9 mil, considerando que nem todas teriam engravidado após serem estupradas.

Isso indica que a maioria das meninas não tem sido atendida como vítima de um crime — ou, em alguns casos, que nem sabe que sofreu uma violação. O índice das que têm acesso ao aborto legal é ainda menor: em cinco anos, somente 55 crianças vítimas de estupro fizeram o procedimento, de acordo com a Secretaria do Estado da Bahia (Sesab). Isso corresponde a 0,92% de um universo de 5.939, de 2021 até o momento.

“A realidade é que a grande maioria nem chega ao serviço. A gente tem uma grande dificuldade de acesso, porque meninas com menos de 14 anos que chegam para fazer o procedimento são um número muito reduzido. E se uma menina com menos de 14 anos está gestante, é porque ela sofreu um estupro”, diz a psicóloga Fabiana Kubiak, da Área Técnica de Atenção à Pessoa em Situação de Violência Sexual da Sesab.

Por isso, a aprovação de um projeto de lei na Câmara dos Deputados na última quarta-feira (5) preocupa os profissionais de saúde. O projeto suspende uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), de dezembro de 2024, que determinava que a criança deveria ter a garantia do direito de acesso à informação sobre o aborto legal e permitir que o procedimento fosse feito sem necessidade de registrar o boletim de ocorrência policial ou de supervisão judicial.

Especialistas, entidades e mesmo órgãos como o Ministério das Mulheres demonstraram preocupação por entender que o projeto vai dificultar o acesso a esse direito por crianças estupradas. A proposta agora segue para ser votada pelo Senado Federal.

“Toda menina menor de 14 anos tem direito ao abortamento, mas elas não estão tendo acesso. Elas estão tendo esses bebês, não estão sendo notificadas de que aconteceu essa violência e estão sendo impedidas. A resolução do Conanda não tem a ver com a garantia desse direito, mas com o estabelecimento de um fluxo claro de como esse acesso deve ocorrer nos serviços de saúde", explica Fabiana. Até 2026, deve ser lançado o protocolo intersetorial de atenção à pessoa em situação de violência sexual da Bahia, que já está em fase de finalização. A plataforma deve reunir todas as informações para vítimas e profissionais da área.

Naturalização

Segundo a psicóloga Fabiana Kubiak, entre os motivos para não existir notificação de muitos dos casos de estupro de vulnerável nessa categoria é porque uniões afetivas entre crianças e adultos ainda são tratadas de forma natural. “A gente escuta que a menina está morando com o cara e, às vezes, a adolescente que está desprotegida é responsabilizada”, diz.

Nesta semana, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou um dado que reforça esse diagnóstico: a Bahia é o segundo estado com o maior número de crianças e adolescentes vivendo uniões conjugais no país. São mais de 2,7 mil indivíduos nessa faixa etária vivendo com parceiros como um casamento, ainda que o casamento civil no Brasil só seja permitido a partir dos 16 anos.

Na Bahia, de acordo com Fabiana Kubiak, a faixa etária das crianças que tiveram filhos após estupro é ainda maior que no Brasil, chegando aos casos com pessoas de 9 a 14 anos. Das 5.939 que deram à luz entre 2021 e 2025 (até o fechamento dessa edição), 5.238 eram negras (pretas e pardas), o que corresponde a 88% de todo o universo. Já entre as 55 que tiveram acesso ao aborto, todas eram negras.

“Onde estão essas meninas (que não chegam aos serviços de abortamento)? Se essas meninas estão parindo, elas estão sendo estupradas. Estão sofrendo violência. Depois do estupro, sofrem mais uma violência por parte da sociedade, que impõe a elas a necessidade de ter esse filho”, reflete Fabiana.

A resolução do Conanda foi construída a partir de diálogos dos serviços de saúde com a sociedade civil organizada e órgãos competentes. “Ela veio como uma solução para os problemas que a gente tinha, e o projeto de lei que tenta derrubar isso. Caso o Senado venha a aprovar também, o acesso vai continuar muito difícil e você pode ter desigualdades regionais. Pode criar insegurança para os profissionais e a gente vai ter o retorno às barreiras de preconceito e de crenças culturais “, acrescenta.

Perfil

Na Maternidade Climério de Oliveira (MCO), instituição vinculada à Universidade Federal da Bahia (Ufba), o perfil das crianças vítimas de estupro que chega ao Apoiar, que é o programa de atendimento à pessoa vítima de violência sexual, é semelhante. Desde 2021, quando o serviço foi criado, foram mais de 200 atendimentos, mas apenas 22 de crianças até 14 anos.

Das 22 pacientes, metade chegou a passar pelo abortamento. A instituição é a única do estado que faz a interrupção da gestação após 22 semanas e uma das únicas do país. Até pouco tempo, além da MCO, esse atendimento só ocorria em Recife (PE) e em Uberlândia (MG).

“A maioria dessas meninas (vítimas de estupro) não chega aqui. Elas demoram a descobrir a gestação ou nem descobrem. Às vezes algum familiar descobre ao perceber as mudanças no corpo, porque elas estão também numa fase em que o corpo está mudando pela maturidade. Pode confundir a gestação com sinais da adolescência. Então, não é uma gestação de 12 semanas, já é perto dos 20”, diz Leila Costa, psicóloga do programa.

Essas gestações são consideradas de alto risco. No entanto, como poucas são consideradas vítimas de estupro, os profissionais de saúde especializados acreditam que essas crianças estejam sendo atendidas nos serviços de pré-natal - daí o fato de serem contabilizadas nos índices de pessoas que tiveram partos com nascidos vivos e não nos de vítimas de violência sexual.

Tal como na rede estadual, o atendimento no hospital federal recebe casos de meninas de 12 anos que têm “namorados” com mais de 30 anos - segundo a lei, como não há consentimento nessa idade, continua sendo estupro. Mas há muitos casos de vítimas de abuso por pessoas próximas e da família, como pai, padrasto ou avô.

“Às vezes, a gestação é uma violência crônica, em que a criança já estava sofrendo uma violência sexual há anos, mas a gestação faz com que isso seja descoberto. A gente já atendeu casos em que a vítima nem sabia dizer quando começou (o abuso)”, diz.

Na avaliação de Leila, a proposta de suspender a resolução do Conanda pode deixar famílias que já são vulneráveis ainda mais vitimizadas. “São famílias que têm condição econômica fragilizada, a maioria do interior, às vezes vivendo de auxílio. Vetar esse acesso vai piorar um problema que já é enorme, porque vai impedir as poucas que chegam. Nem essas vão ter esse acesso e ainda vão ter que correr o risco dessa gestação”.