COLUNA BOCA LIVRE

Português instrumental para cozinha brasileira

Será possível que ainda assim a nossa cachaça tem que ser premium? O nosso chocolate tem que ser bean to bar?

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  • Kátia Najara

Publicado em 5 de maio de 2024 às 15:31

Coluna Boca Livre
Coluna Boca Livre Crédito: Kátia Najara

- Estou pensando em comemorar o meu aniversário com um happy hour no Garden. Eles tem um esquema de open bar e all inclusive, com hostess e serviço de valet. O que você acha, amiga? Só as besties!

- Acho ótimo, mas eles estão operando ainda esquema soft opening e os feedbacks no instagram não tem sido legais. Você não acha arriscado? Por que não um brunch na área gourmet do seu prédio?

- Poxa, tá tão hypado lá! E depois eu amei a proposta de menu deles. Você viu os snacks e o couvert com aqueles crudités e mix de nuts? Sem falar na carta de drinks! Faz tanto tempo eu não tomo um wiskey sour chiquérrimo no bom e velho copo old fashioned! E eles ainda colocam zest de laranja!

- Hum, não sei não. O brunch seria muito mais cool. São muito mais opções de menu: waffles, aqueles toasts de avocado com cream cheese, um bowl enorme de salada de frutas com müesli, blinis, muffins salgados, mango chutney, aquele ginger bread de sua irmã, o cupcake de brownie e os cookies de sua mãe, que as crianças adoram; mini hamburguers, caesar salad, cheesecake com coulis de berries, smothies variados... Ai, eu acho tão mais chic! Até porque está na hora de usar aqueles sousplats e mugs lindos que você ganhou no Natal. Vai ficar um must! (oh, não! “um must” não!).

- Mas amiga, isso dá muito trabalho! Se dependesse do boy ele ia contratar a chef daquela steak house para um barbecue & beer – que eu não vou mentir pra você que eu também gosto da idéia, viu?

- Ah, não! Então pede logo um delivery de fast food!

- Não exagera, né? Quem sabe um meio termo? Um jantarzinho mais intimista com uns petit four, umas finger foods, e a própria Bastiana pode preparar um de nossos clássicos aqui de casa, que são o Beauf Bourguignon ou o Coq au Vin; de repente até o Mignon au Vert Poivre com aquelas batatas noisette au gratin. Aquela sommelier amiga minha que trabalha naquele wine bar no rooftop do Blue Tower Lounge Hall pode sugerir uns vinhos.

- É uma idéia também, mas só se a sobremesa for aquele crumble de berries com gelato de lemon curd e praliné. Ah! E RSVP, por favor!

“CONFUSÃO DE PROSÓDIAS E PROFUSÃO DE PARÓDIAS”

Gente, vamos parar de achar que a língua dos outros é mais chique?

Aprender outras línguas é importante para uma boa fluência vida afora, quer seja navegando pelo mundo ou por um livro fundamental que ainda não foi traduzido para a nossa língua mátria. Mas corromper com a cultura alheia a nossa mais valiosa expressão identitária e cultural, além de inculto é cafona. Porque veja bem, chique para quem? Para o gringo que não é. Aliás, eles devem rir muito da nossa “confusão de prosódias” fazendo “profusão de paródias” com a nossa bestagem. É para fazer bonito no meio? Mas que meio? No meio de quem, lá ele?

E outra! Esse negócio de falar inglês fluente para gringo aprovar é o fim da picada colonialista, e na minha cabeça não se aplica nem num âmbito de diplomacia e relações internacionais, porque o que o mundo precisa é de uma boa comunicação, de preferência com o sotaque de cada povo bem marcado ao megafone. As diversas línguas precisam destoar em seus sotaques porque senão deixam de ser diversas. É na comunicação clara e respeitosa que precisam estar entoadas. 

Quem quiser ser entendido aqui que aprenda um pouco da nossa língua, faça mímica, dê seus pulos, que não somos obrigadas.

“SEJAMOS IMPERIALISTAS”

Mas voltando à língua da cozinha, ao contrário do FRANCÊS E INGLÊS INSTRUMENTAL que algumas escolas de culinária adotam, penso que o melhor seria investirmos em aulas de PORTUGUÊS INSTRUMENTAL para cozinheiras e cozinheiros brasileiros, sob pena de continuarmos a dilapidar a cultura alimentar brasileira pela ponta da língua.

Eu sei que na condição de mãe da Gastronomia a França impõe terminologias inerentes ao estudo desta escola fundamental praticada nos quatros do mundo, e há de se considerar que certas palavras e conceitos são difíceis de se traduzir na prática instrumental - como roux, mirepoix, chinois, béarnaise, croûton, consommé; assim como nomes de pratos como o steak tartar inglês, a rösti suíça, a paella espanhola, o sashimi japonês, e por aí vai, que ninguém é doido de mexer nisso.

Mas sour cream é creme azedo; bechamel é molho branco e velouté é veludo; vanilla é baunilha; au gratin é gratinado; fouet é batedor de arame, champignon é cogumelo Paris, aceto é vinagre e bouquet garni é buquê de ervas; al dente pode se ao dente mesmo; o corte brunoise é cubinho, o chiffonade é tiras de qualquer espessura, que quando finas são julienne – eu mesma não resisto a esses e adoro falar que fiz chiffonade de couve e soltei um brunoise de cenoura sobre o risoto; roll é rolinho, bença, e grill é grelha; basilico é manjericão, coriander é COENTRO, dill é endro; coffee-shop é cafeteria, on the rocks é com gelo, bitter é amarga, blend é mistura; gelato é sorvete e hot dog é cachorro quente, visse? Ecobag é sacola ecológica, homemade é feito à mão, e frozen é filme da Disney.

Sem falar nas tantas palavras que já aportuguesamos abraçadas pelo Houaiss - como suflê, pudim, bolonhesa, bufê, uísque, conhaque, confitado, croquete, espaguete, frapê, fricassê, nhoque, musse, patê, ponche, risole, rosbife, estrogonofe, bistrô e tantas outras. E ainda tem os neologismos onde podemos pirar para nos acudirem, ó que delícia!

Será possível que ainda assim a nossa cachaça tem que ser premium? O nosso chocolate tem que ser bean to bar? E até a nossa rúcula do quintal da roça tem que ser baby?

Quando é que a gente vai entender de uma vez por todas que chique mesmo é preservar e desfilar a própria identidade cultural, que no caso da cozinha, passa duas vezes pela língua?

“SEJAMOS IMPERIALISTAS! CADÊ?”