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Maysa Polcri
Publicado em 30 de março de 2024 às 06:42
“Mas você vai cantar MPB, né? Ou pop?”. Patrícia Ribeiro, 45, perdeu as contas de quantas vezes ouviu os questionamentos enquanto se preparava para soltar a voz em uma roda de samba. É fácil adivinhar que, quase sempre, a dúvida parte de um homem. “Eles ainda têm dificuldades em aceitar que uma mulher pode cantar samba raíz”, diz. Cantora há 10 anos, Patrícia está à frente do Batatinha Bar, uma espécie de casa-restaurante que preserva a memória e intimidade de um dos maiores sambistas de todos os tempos. >
A poucos passos do Largo dos Aflitos, em Salvador, o tronco grosso de uma árvore quase esconde o portão da casa amarela de telhas amarronzadas. O movimento de jovens ao lado de fora, que bebem cerveja, fumam e conversam, ajuda a perceber que o visitante está no lugar certo. Todas às quartas-feiras, a partir das 21 horas, uma roda de choro atrai o público variado, que vem de diversas partes da capital baiana. >
A atração teve início com um grupo de estudos de jovens músicos, que testavam novos arranjos do gênero musical no bar comandado por Patrícia Ribeiro. Os encontros se tornaram semanais e foram batizados de Roda de Choro do Batatinha. A entrada custa R$20 e o som vai até à meia-noite - horário combinado com a vizinhança, que é residencial. Já o nome da apresentação é uma justa homenagem ao compositor baiano, que viveu na residência no início da década de 80. >
“Batatinha fazia composições aqui com outros grandes compositores, como Riachão e Edir Pacheco. Por volta de 1983, era um bar muito forte na cena não só do samba, mas da música. Artistas de vários gêneros frequentavam e era um lugar que atraía muita gente”, conta Patrícia. O pai da sambista era um dos fãs que acompanharam de perto a frenesi na época.>
Depois da morte de Batatinha, em 1997, a casa chegou a ser transformada em centro cultural, mas foi, aos poucos, sendo deixada de lado. Até que no final da pandemia, um dos filhos do sambista transformou o espaço em bar. Foi quando Patrícia entrou na jogada com uma proposta quase irrecusável. “Eu pedi para tocar com o meu grupo, o Samba do Liba, a cada 15 dias e ele topou. Só que ele voltou a morar na Alemanha em maio do ano passado e disse que eu poderia alugar o espaço”, relembra. >
O voto de confiança contrasta com as dificuldades enfrentadas por Patrícia desde o início da carreira, em 2013. Ter que provar que é conhecedora de samba e que comanda um bar não é tarefa fácil no meio majoritariamente masculino - e, infelizmente, ainda machista. >
Patrícia Ribeiro
CantoraAinda sem muita certeza das transformações que faria na residência de número 68 da Ladeira dos Aflitos, Patrícia aceitou a proposta e convidou dois amigos, Thiago e Roberto, para serem seus sócios. O investimento deu certo e a casa de samba tem feito sucesso. Quando a reportagem visitou o Batatinha Bar, em uma quarta-feira de março, todas as mesas estavam ocupadas e algumas dezenas de pessoas assistiam, em pé, à apresentação musical. >
O que difere o lugar de outros estabelecimentos de Salvador é o ambiente intimista. Apesar das reformas, o aspecto de casa foi mantido no Batatinha Bar. O sofá de couro na sala, onde também há mesas e cadeiras de madeira, além do cheiro que exala da cozinha aos fundos, dão a sensação que os visitantes estão em uma residência e não em um bar. >
Foi o que sentiu a paulista Mariana Silva, que estava no local pela primeira vez. “Parece que estou em casa de tão confortável e acolhedor”, falou. Quando o choro começa a ser ouvido pelos visitantes, o clima se torna de admiração. Casais aproveitam o clima para ficar agarradinhos e alguns visitantes colocam as cadeiras enfileiradas para prestar atenção em todos os detalhes dos instrumentos. >
A variedade de rótulos expostos no bar indicam que o cardápio vai além da cerveja, bebida preferida dos visitantes. Lá são servidos drinks, que custam entre R$15 e R$30, além de petiscos, como pastéis e bolinhos. Já as rodas de samba costumam acontecer nas quartas, sextas e sábado. A programação é divulgada semanalmente no perfil do bar no Instagram. >
“Consideramos uma transformação que enriqueceu o samba na cidade. Você pode encontrar bares que tocam samba em Salvador, mas a nossa casa é a única específica para samba e choro”, analisa Patrícia sobre o um ano de funcionamento do Batatinha Bar. O choro, ou chorinho, surgiu em meados do século XIX, na periferia do Rio de Janeiro. >
De acordo com a Sociedade Artística Brasileira (Sabra), os primeiros grupos dedicados ao estilo remetem à 1870 e eram formados por funcionários públicos e membros da classe média baixa carioca, chamados de ‘chorões’. O ritmo é basicamente instrumental e utiliza cavaquinho, violão, flauta, entre outros instrumentos que são o tom melancólico da melodia. Brasileirinho, composição de Waldir Azevedo em 1947, é um dos choros mais conhecidos no país. >
Com o movimento crescente no bar, Patrícia e os sócios sonham em transformar o Batatinha Bar em uma referência do choro no Brasil, além de divulgar a imagem do sambista que dá nome ao espaço para o mundo. Batatinha foi um grande sambista soteropolitano, que não teve, em vida, o reconhecimento merecido. >
Foi ‘descoberto’ pelo locutor Antônio Meira na década de 40, e teve suas músicas interpretadas por Maria Bethânia, Jamelão e Gilberto Gil. “Muita gente já ouviu falar, mas não conhece a história de Batatinha ou conhece as composições dele na voz de outros artistas. Queremos mudar isso”, almeja Patrícia. >
O projeto especial Som Salvador é uma realização do Jornal Correio, com patrocínio da Unipar, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Wilson Sons e Salvador Shopping.>