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Como funciona o esquema bilionário que usa estrada baiana para tráfico de aves de canto

Descubra como a BR-116 virou rota de quadrilhas e concentra 95% dos flagrantes de comércio ilegal de animais silvestres no estado

  • M
  • Moyses Suzart

Publicado em 27 de setembro de 2025 às 05:00

BR-116 concentra quase todas as apreensões e confirma o estado como epicentro do comércio ilegal que movimenta bilhões.
BR-116 concentra quase todas as apreensões e confirma o estado como epicentro do comércio ilegal que movimenta bilhões. Crédito: Divulgação

A BR-116 corta mais de 900 quilômetros do solo baiano e se tornou a principal rota deste voo rasteiro do tráfico de aves de canto no país. No estado, onde quase 900 espécies de pássaros já foram descritas, o tráfico encontrou seu corredor preferido: as estradas federais. Por aqui, 95% das apreensões acontecem nas rodovias interestaduais, onde o canto das aves é silenciado dentro de caixas e mochilas. Este ano, a PRF já apreendeu 4.108 unidades somente na BR-116. O que deveria ecoar na natureza acaba sendo reduzido à mercadoria de contrabandistas, que lucram 2 bilhões de dólares com este crime ambiental.

Segundo dados da PRF, de primeiro de janeiro a 22 de setembro deste ano, 4.343 aves foram resgatadas nas BRs que cruzam a Bahia, sendo 94,6% somente na BR-116. Outras rodovias, somadas, chegaram a 72 ocorrências. No mesmo período do ano passado, foram 4.044 aves recuperadas, um aumento de pouco mais de 7%, se compararmos com os números atuais.

Um relatório da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) aponta que a rota deste contrabando na Bahia acontece quase exclusivamente pelas estradas federais, independentemente se é um traficante internacional ou um vendedor avulso na beira da estrada.

“Nos estados nordestinos é comum a presença de pessoas, nas margens das rodovias, comercializando esses animais. Os principais pontos de destino desses animais são os estados do Rio de Janeiro e São Paulo, onde são vendidos em feiras livres ou exportados por meio dos principais portos e aeroportos dessas regiões”, descreve o relatório, que aponta para cidades com mais índices de tráfico de aves de canto no estado: Milagres, Feira de Santana, Vitória da Conquista, Curaçá e Cipó. Apenas as últimas duas não são cortadas pela BR-116.

Para se ter uma idéia de como as estradas federais são as rotas preferidas, não é incomum a Polícia Rodoviária Federal registrar mais de um caso de contrabando em menos de 24 horas. No último dia 17 de setembro, a PRF prendeu um rapaz com duas aves de canto em condições precárias e sem documentação. Algumas horas depois, parou um ônibus que levava 24 passarinhos aglomerados em três pequenas gaiolas. Logo em seguida, um rapaz acabou preso em flagrante após transportar três da espécie Coleirinhos escondidos dentro de uma mochila.

O mais preocupante é que os números da PRF são apenas uma ponta irrisória da amplitude deste tráfico, por diversos fatores, entre eles a falta de uniformidade nos dados de apreensões, o que dificulta na mensuração da gravidade do problema ambiental. Os números citados até agora foram registrados apenas pelos policiais rodoviários federais. Não há um registro universal, em que dá a dimensão total do combate ao tráfico. A Polícia Militar da Bahia, por exemplo, divulgou que foram resgatados 8.471 animais da fauna silvestre, a maioria esmagadora de aves de canto. Cada órgão tem seu número, o que prejudica, inclusive, um combate mais uniforme.

“A falta de dados desprioriza as ações de fiscalização contra o tráfico de animais silvestres, o que, por sua vez, significa que há menos dados para coletar. Em última análise, é um paradoxo que tem impactos graves e duradouros nos esforços locais de conservação, nas economias e no Estado de Direito”, disse Juliana Machado Ferreira, em sua apresentação do relatório Tráfico de Vida Selvagem no Brasil, sem versão em português, pois foi publicado no Reino Unido.

A Bahia é uma das maiores rotas deste tráfico. No início do mês, uma mega operação liderada pelo Ministério Público da Bahia prendeu um suspeito que seria o chefe da maior quadrilha de animais silvestres do país. Apesar de diversos animais capturados, as aves de canto eram maioria, por serem as mais lucrativas. O CORREIO apurou que o nome dele é Weber Sena Oliveira, vulgo Paulista.

Segundo o MP-BA, o suspeito chegava a vender a espécie Curió, a mais cobiçada e ameaçada de extinção na natureza, por R$ 80 mil. O mais curioso é que este homem já foi flagrado diversas vezes com animais silvestres. Chegou a ser pego com 1.575 pássaros, mas nunca foi preso. Sua prisão só foi possível agora por outros motivos: associação criminosa e lavagem de dinheiro.

“Segundo as investigações, a organização possuía uma estrutura ordenada e com clara divisão de tarefas, com quatro núcleos operacionais”, disse o MP, que revelou um esquema organizado para a comercialização, com estrutura e funções específicas neste núcleo.

“De captores e fornecedores, responsáveis pela caça ilegal e pelo acondicionamento precário das aves em áreas rurais da Bahia; de transporte, encarregado de conduzir os animais, em condições de severos maus-tratos, até os pontos de comercialização; o financeiro, para movimentar recursos ilícitos por meio de contas bancárias utilizadas para ocultar e dissimular a origem do dinheiro obtido com o comércio ilegal; e os dos destinatários e receptadores, situados em sua maioria em Salvador, que adquiriam os animais tanto para revenda quanto para ostentação”, completou o MP.

Pássaros apreendidos na BR-116
Pássaros apreendidos na BR-116 Crédito: Divulgação

Para a tenente coronel Érica Patrício, comandante da Companhia Independente de Polícia de Proteção Ambiental (Coppa), o enfrentamento ao tráfico de fauna apresenta desafios tanto operacionais quanto legais. “Entre os desafios operacionais estão a dificuldade de flagrante no momento exato da comercialização. Do ponto de vista legal, embora a legislação ambiental brasileira seja avançada, as penas ainda são brandas e frequentemente convertidas em multas ou medidas alternativas, o que pode não gerar o efeito dissuasório esperado”, disse.

Somente até a primeira quinzena de setembro, 8.471 animais da fauna silvestre foram resgatados em ações de fiscalização ambiental da Coppa, apenas em Salvador e RMS. “Em muitas regiões, a criação de aves de canto faz parte de tradições familiares. Ao mesmo tempo, há desconhecimento sobre os impactos ecológicos e legais dessa prática”, completa.

Lucro

Se já é difícil mensurar o número total de apreensões, imagina o lucro que este crime fornece aos traficantes. Segundo a Renctas, este mercado ilícito movimenta cerca de 10 bilhões de dólares, por ano, em todo o mundo. É o terceiro maior, perdendo apenas para drogas e armas. No Brasil, estima-se que traficantes lucram 2 bilhões de dólares, podendo chegar a 15% do mercado mundial.

Não existe uma diferenciação para cada espécie, mas as aves de canto estão no topo deste tráfico, com mais de 80% do número total de animais traficados. Estima-se que, todo ano, cerca de 38 milhões de animais são traficados por ano. Aves brasileiras são traficadas para 162 países, que saem das estradas, incluindo as baianas, e seguem para portos e aeroportos do eixo São Paulo e Rio de Janeiro. Também conhecidos como passeriformes, eles estão entre os mais cobiçados, principalmente no mercado interno. E isso enche os olhos de facções, como o Comando Vermelho.

No último dia 16, quarenta e sete pessoas foram presas e mais de 800 animais foram resgatados durante a execução da operação São Francisco de Assis, no Rio de Janeiro. A quadrilha, em um ano, teria faturado R$ 5 milhões, segundo as investigações. Os policiais indicam que um vendedor teria vendido 45 mil animais neste período. Na apreensão, armas e drogas também foram encontrados, pois o CV, presente no estado, teria participação, principalmente na segurança do transporte das aves. Estes animais teriam vindo, na sua maioria, do Nordeste.

O esquema segue um roteiro, que começa com o caçador, independentemente do seu tamanho. Eles capturam as aves e as vendem a interceptadores, muito abaixo do preço vendido de forma regular. A partir daí o transporte é feito pelas rodovias federais, como a BR-116, até o Rio. Ou seja: sabe aquele rapaz que fica na beira da estrada vendendo aves? Ele também tem sua participação efetiva no esquema.

Mortes

Se o tráfico movimenta tantos pássaros, a quantidade de espécies retiradas da natureza pode ser muito maior e quase imensurável. Nenhum órgão tem este número, na verdade. Uma captura pode ocorrer em qualquer lugar. Chega a ser quase impossível prever a quantidade diária de aves retiradas da natureza, pois algumas sequer sobrevivem para se tornar estatística.

Segundo dados do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), apenas 1 a cada 10 aves capturadas no seu habitat sobrevive até chegar no comprador final. As aves, além de serem capturadas de forma ilegal, são transportadas e guardadas de maneira precária e insalubre, ocasionando muitas mortes, a maioria no transporte. Pesquisas científicas também revelam que a forma de manejo está acentuando doenças crônicas nestas aves, o que também geram perdas consideráveis.

“Óbitos devido a processos infecciosos foram os mais predominantes entre os animais de tráfico, caracterizados principalmente por infecções mistas por agentes bacterianos e fúngicos, enquanto os processos não infecciosos, principalmente traumatismos, se destacaram entre aqueles de vida livre”, descreveu a médica veterinária Thais Caroline, em seu estudo sobre Causas de Morte em Passeriformes. E este perigo pode estar inclusive entre as aves resgatadas, pois elas podem, quando são devolvidas para a natureza, levarem essas doenças para outras espécies livres.

Ainda segundo ICMBio, este crime também está levando muitas espécies à extinção. Entre os 10 últimos animais catalogados como extintos nos últimos anos, ou que só existem em cativeiro, sete são aves, sendo quatro que só existiam no Nordeste.

Tráfico de animais silvestres na Bahia por Divulgação