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Moyses Suzart
Publicado em 4 de outubro de 2025 às 05:00
Thais Capistrano tem um ritmo de trabalho bem intenso. E, como toda trabalhadora brasileira, nada como dar aquela pausa na copa para um cafezinho. Contudo, ao contrário de outros trampos, quase sempre ela não volta apenas com aquele menorzinho. “Fui tomar um café e estou voltando com um Bem-Te-Vi”, diz a médica veterinária, enquanto se equilibra entre a caixa com a ave e a sua bebida. Ela faz parte da equipe do CETAS Salvador, Centro de Triagem de Animais Silvestres do Inema/Ibama. Pouca gente conhece esta estrutura crucial, mas é lá o local que recebe praticamente todas as espécies da fauna apreendidas em ações contra o tráfico de animais silvestres na Bahia. Fomos conferir como é o trabalho desta turma, onde a pausa para o cafezinho é mais rara que a chegada de bichos que clamam por ajuda. >
Na chegada, parece que você está entrando em um zoológico. Uma paz terrível, como dizem os funcionários, principalmente com gritos de araras, bem na mata quase fechada de Pituaçu. Mas a semelhança acaba aí. Não há nada de exibição ou fofurice, apesar de ter muito carinho. O Cetas Salvador foi feito para dar uma segunda chance aos animais silvestres que foram retirados do seu habitat natural por nós, humanos, direta ou indiretamente. E logo é constatado que a rotina é outra e não dá tempo para distrações. O motivo de tanto barulho fica claro: tinham acabado de chegar 29 aves resgatadas do tráfico, entre elas uma arara-azul, ameaçada de extinção. Todas aguardavam a triagem, algumas saudáveis, outras debilitadas.>
A azul, sozinha aguardando a triagem, mostrou como a ação humana deixa marcas. Quando Marta Calasans, médica veterinária e gestora do Cetas, abriu a gaiola para verificar a comida, ela deu o pé, aguardando ser pega pela profissional. O que muita gente enxerga como fofura, para os especialistas é um sinal preocupante: ela está tão acostumada com a criação humana que dificilmente conseguirá retornar à natureza.>
A domesticação é um dos pontos críticos no trabalho de reabilitação da fauna silvestre. Quando ficam acostumados à presença humana e a condições artificiais, como cativeiros improvisados, deixam de desenvolver habilidades essenciais, como caça, voo ou socialização com a própria espécie. Isso torna a reintrodução extremamente difícil, reduzindo as chances de sobrevivência e equilíbrio ecológico. Por isso, o Cetas reforça sempre: animal silvestre não é pet. Não é e nunca será. E enquanto houver comprador, o tráfico de animais continuará, abastecendo o ciclo frenético que leva milhares de bichos para os centros de triagem todos os anos.>
Até setembro deste ano, a Polícia Militar da Bahia resgatou 8.471 animais silvestres em poder de criadores irregulares ou traficantes. A Polícia Rodoviária Federal apreendeu outros 4.343 no mesmo período. E nem estamos contando com a Polícia Federal e o ICMBio, que não enviaram números até o fechamento desta edição. É muito bicho, né? Mas você já parou para pensar para onde eles vão depois de serem apreendidos? O destino é justamente o centro que visitamos, que recebe todos, sem distinção: cobras, jabutis, aves, mamíferos, qualquer espécie da fauna brasileira. Não, eles não recebem animais domésticos, como gato e cachorro. >
O Cetas é vinculado ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e recebe milhares de animais todos os anos, a maioria aves vítimas do tráfico de fauna. Além da capital baiana, existe uma unidade em Cruz das Almas e este mês será inaugurada outra em Barreiras, no oeste da Bahia, para descentralizar a demanda. Só em Salvador, em 2025, já foram recebidos milhares de animais.>
Para se ter uma ideia, entre agosto de 2020 e agosto de 2023, o local recebeu cerca de 27 mil animais, dos quais 8 mil foram devolvidos à natureza. Essa devolução depende de fatores como saúde, comportamento e capacidade de sobrevivência do animal. O convívio com humanos é nocivo nesse processo, já que o bicho perde seu instinto de sobrevivência. Até a alimentação precisa ser readequada com base no habitat natural. Alguns recebiam até feijoada como alimento…>
“Muitos animais chegam aqui acostumados a comer feijão, imagine. Nós precisamos reeducar a alimentação para que eles voltem ao que é natural: frutas, sementes, folhas, animais vivos... A arara, por exemplo, não pode comer alimento cortado pequeno: precisa de pedaços grandes, para não perder seu comportamento natural. E nem todas vão conseguir buscar isso na natureza, após longos anos criados em locais que não são ideais para animais silvestres. Neste ponto, os tratadores são fundamentais: cuidam da rotina, da limpeza, da alimentação e da adaptação de cada animal", explica Marta Calasans.>
A dependência com o antigo tutor pode deixar sequelas para toda a vida, incluindo maus-tratos. Um exemplo foi um macaco-prego que chegou com uma corrente amarrada na barriga, onde sempre viveu preso em um quintal. Vizinhos denunciaram e o primata acabou no Cetas. A remoção da corrente foi difícil, pois ele já havia se acostumado com aquilo. E o rapaz é desconfiado, viu. Logo soubemos o motivo. >
“Virei vilã para ele, deve me odiar [risos]. Eu que tirei a corrente e também dava os medicamentos. Ele até hoje me olha diferente. Mas o Cetas é isso: temos amor por eles, mas é um trabalho árduo. É um ciclo definido de recuperação de um animal que não estava no seu lugar de fato”, conta Marta, que ainda não sabe se o macaco terá condição de retornar à natureza.>
“Ele dificilmente terá condições de retorno, pois existe um vínculo que retirou suas habilidades naturais. Mas ainda temos esperança. É um trabalho de formiguinha, respeitando a etapa de cada animal. Tem uns que chegam aqui e três dias depois estão de volta na natureza. Outros, levam meses. Alguns, nunca retornarão”, completa Marta. Os animais sem condições de retorno são destinados a zoológicos ou centros de pesquisa ou de acolhimento credenciados pelo Ibama.>
Para quebrar o vínculo com o ser humano, às vezes é preciso endurecer, sem perder a ternura. Alguns animais ficam em isolamento quase total, sema presença do homem, mantendo contato apenas com tratadores e veterinários. É o caso de uma jaguatirica jovem que, ao encostar na gaiola, veio pedindo carinho, ronronando como um gato. Mas não é um gato…>
“Muitas vezes, nem é por mal. Uma pessoa que mora isolada na zona rural encontra um filhote e cria feito gato. Mas ele cresce tanto, que acaba abandonado, não sabem o que fazer. Nossa jaguatirica é dócil, apesar da brincadeira pesada. Isso pode ser ruim para ela. Estamos batalhando para que volte à natureza. Ela evoluiu bastante. Para isso, precisa se isolar do humano”, completa Marta. O felino chegou com fratura na perna, já recuperada, e agora passa por avaliação para decidir se será reintegrada.>
Se não bastasse o trabalho diário, a equipe do Cetas Salvador, como biólogos, veterinários, técnicos do Ibama e tratadores, ainda enfrentam outro obstáculo: os influenciadores que exibem animais silvestres nas redes sociais.>
Quando influenciadores digitais mostram animais da fauna nativa sob o pretexto de “cuidar” ou “proteger”, geram um efeito nocivo e de cascata. Essas postagens romantizam a posse irregular e reforçam a ideia de que é possível ter um bicho da fauna brasileira como pet. Esse tipo de exposição atrai seguidores, mas também alimenta o tráfico de animais silvestres, já que muitas pessoas passam a desejar espécies semelhantes. Outro problema é quando esses influenciadores retratam órgãos ambientais como vilões.>
“O Ibama, o Cetas, todos nós fazemos um papel de proteção ao meio ambiente. E quando resgatamos animais de influenciadores, estamos fazendo nosso papel de prevenção, preservação e educação ambiental. Mas o que mostram, em alguns casos, é que estamos tirando os animais de suas casas. É muito pelo contrário”, afirma Ricardo Saldanha, técnico do Ibama que atua no Cetas Salvador. Hoje, existem 29 unidades em todo o Brasil, algumas ligadas diretamente ao Ibama e outras a órgãos estaduais. >
Conheça o Cetas, onde animais silvestres apreendidos são recuperados
Vida e morte>
Com a entrada constante de animais, em alguns dias chegando a centenas, no centro a vida e a morte caminham lado a lado. A maioria chega em condições críticas, e apenas cerca de 30% alcança o estágio final de soltura. Pode parecer pouco, mas é quase um milagre diário diante do cenário em que esses bichos são resgatados. A mortalidade é inevitável.>
“Já tivemos apreensão em que chegaram quatro, cinco, seis passarinhos dentro de uma caixinha minúscula, sem comida, sem água. Aí você faz todo o trabalho de reabilitação. Às vezes chegam cem indivíduos, sobrevivem cinquenta. Mas o esforço é contínuo, não desistimos de nenhum”, relata Marta, enquanto segurava um jabuti atropelado, que se recuperava de cirurgia. No seu casco, repleto de parafusos e resina, a evidência de dois lados humanos. O que atropelou e o que está recuperando. Em breve, estes cascos artificiais serão produzidos em impressoras 3D.>
São muitos jabutis com problemas. Segundo o Cetas Salvador, eles são populares como pets porque são pequenos quando filhotes. Contudo, crescem bastante: podem chegar a 15 quilos, e outras espécies chegam a 30.>
Para que o ciclo se complete e o maior número possível de animais volte à natureza, o centro segue uma rotina bem definida. Quando um animal chega, passa pelo registro, triagem inicial e avaliação veterinária, que identificam a espécie, a origem e as condições de saúde. Em seguida, são iniciados tratamentos médicos, alimentação e cuidados de reabilitação para restaurar comportamentos naturais.>
Foi o que aconteceu com as araras recém-chegadas: todas receberam prontuário, exame inicial, identificação por chip ou anel e análise do estado de saúde. Algumas já tinham chip, o que pode indicar reincidência no tráfico.>
Em alguns casos, em três dias o animal pode ser devolvido, como uma jibóia jovem achada no quintal de uma casa, saudável e pronta para ser reinserida. Já outra jibóia, resgatada em Simões Filho, estava com estomatite e precisará de mais tempo. Aves de canto passam pelo mesmo processo, ganhando inclusive anilhas com a identificação do centro.>
A etapa final é sempre a destinação: quando possível, retorno ao habitat natural; quando não, encaminhamento para zoológicos, criadouros científicos ou centros de conservação.>
Uma arara considerada a xodó da equipe é exemplo desse ciclo. Chegou ainda filhote, sem penas, debilitada e com fraturas na asa. Passou por duas cirurgias, recuperou as penas e já fez voos de teste. Em breve, será devolvida à natureza. Os locais de solturas são um segredo, por motivos óbvios. Ninguém quer reincidência. Melhor assim. Para a equipe, além da saudade, ficará o orgulho de ver mais um ciclo se completar.>
CETAS Salvador>
Fica localizado na Rua dos Rádioamadores, 105, Pituaçu, Salvador - BA (41.741-080), e funciona como ponto central de recebimento de animais silvestres da capital baiana, por meio de resgate e/ou entrega voluntária, além de diversas regiões do estado. Qualquer pessoa em posse, ou que encontre um animal silvestre, pode procurar o centro. O espaço não é aberto para visitação. O telefone do local é o (71) 9661-3998.>