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Publicado em 30 de agosto de 2025 às 05:00
Neste enredo, descrevo um outro lado que muitos desconhecem, para dar a entender aos leitores brasileiros como é a África. Mas faço um recorte de escrever apenas sobre Moçambique, país do qual faço parte e tenho legitimidade para descrevê-lo sem correr o risco de ampliá-lo ou rotulá-lo. O continente africano é constituído por mais de 54 países. É muito complexo, por isso não cabe a sua descrição por uma só pessoa ou em um simples texto. Do mesmo jeito que seria difícil descrever o continente americano, europeu ou asiático de tal maneira. Tudo isto parte de uma conversa com uma professora, que me propôs escrever um pouco sobre África-Moçambique, sobre as semelhanças e diferenças com o Brasil. >
Permitam-me apresentar-me. Respondo por Edson Abilio Luciano, tenho 22 anos e sou estudante da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), no curso de Bacharelado em Humanidades, desde 2023. Antes de vir para o Brasil, já frequentava o meu terceiro ano de faculdade na Universidade Rovuma. Ser estudante internacional, ou melhor, intercontinental no Brasil, faz de mim alguém com um certo privilégio. Foi desejo e aspiração desde a infância viajar pelo mundo. >
A minha experiência no Brasil é marcada por diversas interpretações sobre este país. Eu já tinha uma interpretação por meio das mídias, mas era insuficiente. Existem questões que tenho observado e vivenciado cá que têm sido surpresas para mim: aspectos culturais e sociais em diversos espaços que já pude frequentar enquanto estudante africano e moçambicano. Como qualquer estudante negro e africano, a minha vinda cá é marcada por estereótipos por um lado e elogios pelo outro. Fazendo hoje uma descrição do Brasil, não me limitaria aos problemas, racismo, intolerância religiosa, violência policial e outros. Pois também conheci as belas experiências e oportunidades que este país proporciona, fiz amizades com pessoas generosas, desde professores, colegas e vizinhos. >
Apresentar aspectos que acho diferentes e semelhantes com o meu país, Moçambique, não é algo que me desafia. Isto porque o Brasil, enquanto um país formado por vários povos, partilha vários aspectos com Moçambique. Embora em Moçambique se fale mais de 40 línguas, a oficial é o português. A outra semelhança está em alguns aspectos culturais, gastronomia e até a religiosidade (cristianismo, islamismo e a prática de tradições africanas). Aliás, são países com o mesmo predador na história colonial, Portugal. Moçambique é um país localizado na África Austral e banhado pelo oceano Índico. Com uma grande diversidade cultural, reúne mais de 10 grupos sociais (étnicos), dentre eles: Macua/Makhuwa, Makondes, Yaos, Maraves, Shonas, Bitonga, Chopi, Tsongas, que se dividem entre Rongas, Tswa e Changanes. E eu, que falo, faço parte de um destes: os Macuas, que ficam na zona norte do país, entre as províncias de Nampula a Cabo Delgado. >
Um outro aspecto que aproxima os dois países é a beleza paradisíaca. Destaco no Brasil, em especial, as belas praias. Estando na Bahia, tive a oportunidade de observar as belas praias e ter visto e ouvido falar de outras no território brasileiro. O que não difere tanto da realidade moçambicana. O país possui várias praias, rios e paisagens belas, do Rovuma ao Maputo, além de vários recursos naturais: gás natural, petróleo, grafite, diamante, rubis, ouro e outros. Por outro lado, é em Moçambique, na província de Cabo Delgado, onde se localiza a terceira maior baía do mundo, a Baía de Pemba. >
Desafios>
Sobre questões de natureza social, política e econômica, existe uma diferença. Moçambique é um país que só alcançou a sua independência em 1975. E isto leva o país a ter uma transformação social moderada e lenta desde infraestrutura e a própria economia. Sobre a política, alguns aspectos são semelhantes ao Brasil: “democracia”, corrupção, populismo e desigualdades discrepantes entre classes sociais. Em relação à violência, Moçambique enfrenta fenômenos dramáticos em Cabo Delgado. A província, que se localiza na parte norte do país, é atravessada por uma insurgência de grupos armados. Esta é uma das áreas mais promissoras do país, enriquecida por recursos minerais, desde petróleo, turmalinas, ouro, rubis, entre outros. Isto atrai vários inimigos. Eis a razão dos ataques de insurgência registados desde 2017. Por outro lado, um fenômeno de violência marcou o final do ano passado, 2024, após eleições controversas. Este episódio criou instabilidade no país e incentivou manifestações populares a nível nacional. Mas até então, 2025, a situação ficou assegurada, após diálogos entre simpatizantes do partido no poder e demais organizações políticas locais.>
Trago estes aspectos porque muitos cidadãos brasileiros menos informados desconhecem as dinâmicas que perpassam Moçambique e outros países africanos, devido à manipulação midiática e negligência. O que faz com que só tenham informações por meio de alguns tiktokers e blogueiros, nativos ou não, que narram a África como o pior lugar do mundo. Como se isso fosse algo apenas exclusivo ao continente africano, o que não é verdade. A pobreza e a violência, por exemplo, estão presentes no mundo todo e não somente na África. Essa desinformação que empobrece e distorce o continente africano é propagada para conseguir mais engajamento, por pessoas de má fé. Existem também algumas organizações humanitárias que retratam o continente apenas por meio de uma visão deplorável, com intuito de cumprir com algumas agendas. Isto faz com que o continente raramente seja visto com suas diversas riquezas. >
Cultura>
Um último aspecto que destaco aqui, só para não me alongar mais, é a contribuição cultural. Simplesmente para demonstrar, umas dentre várias formas que Moçambique tem se feito presente e contribuído no mundo, mesmo que as pessoas não saibam. Destaco aqui alguns nomes, entre muitos outros, para que os interessados possam pesquisar e se aprofundar. Na música, Azagaia, José Mucavele e Stewart Sukuma. Na dança, Tufo, kadoda, marrabenta, mapiko. Na moda, cito Taibo Bacar e Nivaldo Thierry. Na literatura, Paulina Chiziane e Mia Couto. Na pintura, Bertina Lopes e Malangatana. No ambiente acadêmico, Elísio Macamo e Severino Ngoenha. Na gastronomia, pratos típicos moçambicanos, como mucapata e frango a zambeziana. No desporto, Reinildo Mandava e Geny Catamo. >
Só para terminar, chamo atenção a uma questão. Ao tentar observar questões de caráter social, político, econômico e cultural em espaços onde nunca mantivemos contacto, havendo curiosidade, existe uma necessidade de ir a fundo em busca das informações. Para que não sejamos manipulados ou então conduzidos por narrativas enviesadas, como é o caso de alguns conteúdos produzidos por pessoas que não têm rigor suficiente para disseminar informações. Práticas do gênero têm sido muito propagadas na atualidade, na medida em que quase todos podem produzir o que lhe convém sem se atentar na disseminação de informações verídicas. Digo isto porque eu mesmo já fui alvo, ao conhecer o Brasil apenas por meio dos criadores de conteúdo. Muitas das vezes as informações são distorcidas, sem se importar com as dimensões, particularidades, questões positivas e negativas, progressos, contribuições e outros. Para mais informações sobre Moçambique, recomendo a leitura do jornal O país e pesquisas disponíveis no repositório da UEM, uma das melhores universidades.>
Edson Abilio Luciano é estudante no curso de Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), campus dos Malês/São Francisco do Conde. Pesquisador da Fapesb; membro do projeto “Cholitas re-existem: uma análise das políticas de proteção e de acesso à justiça para mulheres em territórios/comunidades tradicionais bolivianas”; membro do Grupo de Estudos Política Externa Africana (GEPEA/Unilab); membro do grupo de estudos Observatório de Crises e Políticas Internacionais Africanas (OCPIA). E-mail: edsonabilio18@gmail.com>