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O que podemos aprender com os africanos?

Jovens de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique mostram o quanto o Brasil ainda precisa redescobrir sobre si

Publicado em 30 de agosto de 2025 às 05:00

Localizada em São Francisco do Conde, a 80 km de Salvador, a Unilab vem recebendo centenas de jovens africanos, membros desses e outros povos, que vêm ao Brasil para estudar
Localizada em São Francisco do Conde, Unilab recebe centenas de jovens africanos, que vêm ao Brasil para estudar Crédito: Marina Silva

O que significa manjaco, balanta, bijagó, macua, banto? Muitos podem ter dificuldade para reconhecer essas palavras e qual a relação conosco. São nomes de povos de países como Guiné-Bissau, Moçambique e Angola. Entre os séculos XVI e XIX, membros desses povos foram trazidos para o Brasil. Assim como os nagô-iorubás, jejes, haussás, mandingas, jalofos e outros. São, portanto, nossos antepassados. Ainda que 80,8% da população baiana se autodeclare como negra (parda ou preta) ao IBGE (2022), é inegável que permanecemos ignorantes sobre os países africanos e, assim, sobre parte essencial da nossa formação.

Uma oportunidade de diminuir esse abismo é prestar atenção na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. Localizada em São Francisco do Conde, a 80 km de Salvador, a Unilab vem recebendo centenas de jovens africanos, membros desses e outros povos, que vêm ao Brasil para estudar. Conviver com eles é um recurso poderoso de reconexão. Olhar para os africanos de hoje nos ajuda a aprender ou redescobrir valores e conhecimentos um tanto esquecidos, que podem ser preciosos para a construção de novos futuros, aqui e lá.

Passei a trabalhar na Unilab há pouco tempo. Uma instituição jovem (2010), mas que já nasceu audaciosa. A meta é estimular a integração entre o Brasil e demais países falantes do português, especialmente da África. Portanto, trata-se de uma universidade federal afrocentrada que vem atraindo para o campus dos Malês, nome da sede baiana, uma quantidade expressiva de professores de diferentes estados e países, incluindo vários africanos. E, é claro, também tem trazido muitos estudantes, brasileiros e africanos.

Após alguns meses de convívio, tenho a convicção de que essa universidade - seja em suas ações cotidianas ou produções acadêmicas - pode proporcionar a qualquer brasileiro uma experiência rica e uma nova perspectiva sobre a África. Temos ali à disposição uma experiência de internacionalização que oferece trocas culturais, reencontro com o nosso passado e ampliação de visões de mundo.

No começo, mal conseguia entender as moças e rapazes da Guiné-Bissau, Moçambique, Angola e São Tomé e Príncipe, pelo sotaque que remete ao português de Portugal. Mal conseguia gravar os nomes, tão distintos dos nossos. Com o passar dos dias, além de compreendê-los melhor, fui percebendo como são respeitosos, entusiasmados, dedicados, engajados e educados. Como são cidadãos. Foi quando comecei a entender as muitas coisas que podemos aprender com esses jovens africanos. Listo a seguir o que vem chamando a minha atenção.

Primeiro, o RESPEITO. Eles são humorados, brincalhões e, ao mesmo tempo, mais formais do que nós. No modo como falam, cumprimentam, se comportam, se vestem. Pouco antes de uma aula, um deles me procura, explicando que não poderia ficar, porque estava de bermuda. Não estava habituado a assistir aulas vestido de modo informal. Foi com muito esforço que o convenci a ficar. Na Unilab, os banheiros são limpos e sem vandalismo. Noto que o hábito é deixar a bolsa na bancada da pia, enquanto se usa a cabine, sem qualquer preocupação com roubo.

Outra característica marcante é o COMPROMISSO. Não faltam às aulas, prestam atenção, participam. Nos debates, a desenvoltura oral de muitos é, frequentemente, embasbacante. Não foram poucos os que me procuraram colocando-se à disposição para integrar-se a algum projeto, iniciativa, sem qualquer vislumbre de bolsa. Vários calouros, recém-chegados ao Brasil, me procuraram para já conversar sobre suas ideias de pesquisa, para TCCs que farão daqui a vários semestres.

Impressiona ainda a EMPATIA. Noto de várias formas o quanto são solidários. Uma bebê apareceu algumas vezes na minha aula, no colo de algumas alunas. Nenhuma delas era a mãe. Estavam apenas ajudando uma amiga, que assim poderia assistir a aula em outra sala. Um rapaz sente frio, por conta do ar condicionado, a colega tira o casaco e lhe empresta. Quem sabe mais, ajuda os mais inexperientes, nas tarefas, burocracia universitária, na busca de novas oportunidades. Chego para a aula e encontro a sala lotada. São os calouros da Guiné-Bissau, sendo recepcionados por veteranos, que conversam com eles na língua nativa, o criolo guineense.

Por fim, e principalmente, destaco a RESPONSABILIDADE SOCIAL. Em mais de 20 anos de docência, nunca vi tantas pessoas jovens tão preocupadas com questões sociais e como atuarão na transformação dos seus países, na educação, administração pública, meio ambiente, etc. Quando conversamos sobre o Brasil, percebo que também acompanham a nossa conjuntura: “Professora, se o Brasil é um país laico, como pode haver uma bancada religiosa no Congresso?”.

A presença africana foi definidora para que o Brasil se tornasse o que é, para que sejamos quem somos
A presença africana foi definidora para que o Brasil se tornasse o que é, para que sejamos quem somos Crédito: Ilustração: Thainá Dayube

Dificuldades

Nas suas histórias de vida, vislumbro o tamanho dos problemas enfrentados. Percebo como as coisas foram difíceis em países que viveram mais algumas décadas de colonização. Se conquistamos a nossa independência de Portugal no século XIX, para muitos países africanos, o domínio europeu perdurou até as últimas décadas do século XX. E todos ainda buscam caminhos para lidar com as consequências da exploração, violências, desuniões alimentadas pelos colonizadores e cooptação de elites inescrupulosas, como ocorre aqui.

A incipiência da rede educacional obrigou muitos estudantes a se afastarem das famílias nucleares ainda na infância. Para poder estudar, passaram a morar com tios, irmãos ou estranhos. Por vezes sendo bem tratados, por vezes não. Aliás, em muitas escolas os professores ainda batem nos alunos. Existem dezenas de línguas nativas nesses países, mas a única prestigiada é o português. Alguns contam que começaram a aprender o português por volta dos 10 anos. O que motivou bullyings, dificuldades e enormes esforços. Assombra-me a frequência com que relatam experiências precoces de luto e trabalho.

Existem várias universidades em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Alguns dos estudantes africanos da Unilab já tinham frequentado o ensino superior em seus países. Só que lidando com custos elevados (às vezes paga-se até a impressão das provas), percorrendo cotidianamente distâncias enormes e, em geral, tinham sido obrigados a interromper os estudos por falta de condições. A vinda para o Brasil é uma vitória. Em alguns casos, foram várias as tentativas. Mas, fico sabendo, a maioria não recebe apoio dos países de origem e sobrevive com bolsas permanência muito limitadas.

Com os meus alunos, aprendo que as coisas não são um mar de rosas nos seus países, assim como no Brasil. Por outro lado, é bom lembrar que lá também existe uma classe média lutadora, prosperidade, ciência, tecnologia, educação ambiental, arte contemporânea, grandes cidades, acesso à internet, empreendedorismo, experiências agroecológicas e tudo o mais que pudermos imaginar. E que cada país é único, com seus conhecimentos, recursos, conflitos, desafios e oportunidades.

Coletividade

Esses jovens chegaram à Unilab porque professores, amigos, parentes, vizinhos, colegas e até desconhecidos lhes ajudaram a cada passo. Seja para inscrição, trâmites burocráticos ou compra da caríssima passagem. Alguns chegaram a contar com doações anônimas. Acredito que é o senso de coletividade que dá a esses estudantes uma responsabilidade social incomum na idade. Um sentimento que guia as suas escolhas cotidianas, como estudantes, pesquisadores e vem lhes permitindo fazer a diferença quando retornam aos seus países.

Para mim, as histórias de vida, comportamentos e valores dos meus alunos africanos têm sido fonte de reflexão. Enxergo melhor as oportunidades educacionais que o Brasil nos proporciona, assim como o quanto, por vezes, as desperdiçamos. E quão individualistas temos nos tornado. Para muitos brasileiros, o ingresso no ensino superior público virou uma guerra. Ao invés de apoiar uns aos outros, disputamos uns com os outros, judicializamos. Frequentemente, até as escolhas científicas e profissionais são mais guiadas por nossas idiossincrasias do que pelos reais desafios do nosso país. Estamos perdendo de vista justamente o espírito colaborativo que vejo em abundância entre meus alunos. O que talvez explique muitas das nossas precariedades.

A presença africana foi definidora para que o Brasil se tornasse o que é, para que sejamos quem somos
A presença africana foi definidora para que o Brasil se tornasse o que é, para que sejamos quem somos Crédito: Ilustração: Thainá Dayube

Reconexão com a África

Na Unilab, todos os dias, vejo cair por terra os estereótipos que já ouvi na vida sobre pessoas negras e sobre africanos. Afinal, quando foi que nos contaram que africanos podem ser tão disciplinados, educados e respeitosos? E penso, mais uma vez, em quantas riquezas, informações e trocas nos foram roubadas pelas horrores da escravidão e do racismo.

É uma obviedade que a presença africana foi definidora para que o Brasil se tornasse o que é, para que sejamos quem somos. Mas ainda estaremos longe de entender o que em nós é África, enquanto mantivermos tanta ignorância e distância em relação aos países africanos. Por isso, tenho certeza que a oportunidade de conviver com africanos, proporcionada pela Unilab, é uma experiência rica para qualquer brasileiro. Dizem que o melhor da cultura brasileira veio da África. Tenho achado essa ideia bastante sensata e que estamos precisando muito de uma reciclagem. Para ajudar, pedi a alguns dos meus alunos que nos apresentassem aos seus países: Moçambique, Angola, Guiné-Bissau. Eles escreveram textos que estão listados abaixo. 

Agnes Mariano é professora do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), em São Francisco do Conde-BA. E-mail: agnesmariano@gmail.com