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Donaldson Gomes
Publicado em 20 de novembro de 2025 às 05:00
Quando começou a carreira, antes de ser reconhecido como um dos principais executivos do mundo no setor energético, em 2014, e, um ano antes, como um dos membros de governo com maior influência no setor eólico mundial, Rafael Valverde, 42 anos, precisou superar três preconceitos: era novo demais, negro e nordestino. O etarismo foi se tornando uma questão menos relevante com o passar dos últimos 20 anos, mas ainda hoje o baiano, que é diretor geral da Sowitec no Brasil, costuma ser o único negro sentado em algumas mesas de reuniões Brasil afora. “Minha trajetória ainda é incomum, tive a felicidade de percorrer o caminho mais rapidamente”, acredita o engenheiro eletricista. >
Além de comandar a operação local da Sowitec, que é uma gigante no mercado energético mundial e no Brasil está entre as maiores desenvolvedoras de projetos eólicos e solares, Rafa, como as duas décadas de convivência permitem chamar, é diretor da Eolus Consultoria, membro do Comitê de Infraestrutura da Federação das indústrias da Bahia (Fieb), do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) e coordenador do Comitê ESG da associação. Tem ainda experiência na academia, em empresas de geração de energia e uma passagem marcante como executivo no poder público, onde contribuiu para a atração da cadeia produtiva renovável no país.>
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Os 45 minutos de conversa, na última terça-feira (dia 18) pela manhã, foram provavelmente aqueles com menos gargalhadas em anos de convivência. Elas marcaram presença, mas numa intensidade menor que a de costume. Desta vez, o executivo brilhante – “geniozinho”, como definiu certa vez um colega jornalista –, respirou fundo diversas vezes, buscou as palavras com precisão e viu, do outro lado da tela, o repórter com olhos marejados. >
A tentativa de objetividade se perdeu quando o entrevistado respondeu que as suas grandes referências eram Davi, seu saudoso pai, e Jane, a sua mãe – antes de gigantes como Martin Luther King Jr, Muhammad Ali, Edivaldo Brito, Mãe Stella, ou Irmã Dulce. “Meus pais se desdobraram para criar os filhos num ambiente de oportunidades melhores do que as que eles receberam, o que é uma premissa de todo pai”, ressalta. “Eu sempre falei para os dois que eles me estimularam demais a estudar para que eu simplesmente passasse inerte por certas situações”.>
“Se eu nasci num ambiente acolhedor, num ambiente de melhor condição, foi muito por conta do sucesso que os dois tiveram”, afirma.>
Na universidade onde cursou a graduação, o apelido era Preto, o que lhe enchia de orgulho. Era o preto da engenharia, num local em que tinha também o preto da economia e mais um ou outro em outras graduações. “A pauta identitária mexe muito comigo desde desde pequeno”, conta. “A partir do momento em que você se autoafirma, se reconhece dentro daquela cultura, que não é só um processo de cor de pele, mas de entender a ancestralidade, a mitologia”, diz, lembrando que essa consciência se fortaleceu na adolescência. Um dia disse à mãe que não queria mais ser chamado de moreno: “eu sou negro”. >
“Não sou retinto, mas eu sou um negro. Eu tive o privilégio de não viver a vida de um negro padrão da população soteropolitana, mas é meu dever trabalhar para que tudo aquilo a que eu tive acesso possa se espalhar por toda a sociedade”, explica.>
Quando foi eleito pela primeira vez para o conselho da ABEEólica, Rafael se viu como fonte de inspiração para outras pessoas. Uma profissional negra lhe procurou para dizer que ele não tinha noção do quão representativa era a presença dele naquele espaço. “Nunca foi um objetivo ser este representante, mas fiquei muito feliz em saber que as pessoas olhavam para mim com este tipo de admiração”, lembra.>
Se ver como uma referência no setor energético faz Rafael Valverde revisitar a própria trajetória e lembrar que enfrentou, e ainda enfrenta, preconceitos pela cor da pele, por ser nordestino e, em determinada fase de sua vida, porque era muito jovem. Quando se formou, com pouco mais de 20 anos, fez um processo seletivo para ocupar um cargo de gerência numa multinacional de energia renovável, mas, apesar de ter gabaritado a prova, recebeu a oferta para trabalhar como analista – já que a vaga que disputava seria passada para um profissional com mais idade. >
“Aquela negativa que dei para a proposta foi fundamental para mim, porque significava que não aceitaria ser julgado por nenhum outro critério que não fosse a minha competência”, conta. No mestrado, enfrentou o mesmo olhar de desconfiança. Quando precisou substituir um professor experiente, via sentados em cadeiras à sua frente estudantes muito mais velhos que ele. “Eu chegava na sala para dar aula e fazia questão de deduzir uma equação inteira no quadro, uma coisa extremamente complicada, e aí as pessoas passavam a olhar para mim e entender que eu sabia do que estava falando”, lembra. >
Na passagem pelo governo do estado, principalmente em pautas fora da Bahia, passou a lidar com olhares de desconfiança por conta da cor e em relação ao Nordeste mais frequentemente. “Eu era um baiano, igual a milhões que a gente encontra nas ruas de Salvador, que as pessoas no Centro Sul não estavam acostumadas a ver nos espaços que eu estava ocupando”, diz. “Era comum ouvir pessoas falando comigo em um tom jocoso, de desrespeito, até que eu começasse a falar”. >
“Eu sempre fui para o debate, não o étnico. Era um assunto técnico e eu desenvolvia argumentos técnicos, que mostravam porque eu estava ali”, afirma. Às vezes, respondia com alguma ironia também. >
Depois de 20 anos, o nome Rafael Valverde passou a ser respeitado nos fóruns relacionados ao mercado energético, mas fora deles, o negro de paletó ainda causa estranheza. Durante um congresso recente em São Paulo, saiu para almoçar em um shopping e foi abordado diversas vezes com pedidos de informação de quem achava que ele era o segurança dali. >
Rafa afirma que nunca se imaginou diretor de uma multinacional, não por qualquer tipo de dúvida em relação à própria capacidade, mas pelo desejo de estar onde possa fazer diferença. Neste momento da caminhada, ele dirige a Sowitec no Brasil e faz parte de um time que vem fazendo essa diferença. Hoje, 60% da gestão é negra – e ele diz ser um dos mais claros – e 40% dos cargos são ocupados por mulheres. Este é um caminho que a empresa começou a trilhar antes da chegada dele, diz. >
“Eu sou um privilegiado por estar aqui, porque este ainda não é um retrato do setor. Se você pegar as fotos dos palestrantes de um grande congresso de energia, não vai ver 60% de negros, nem 40% de mulheres nas mesas de discussão”, afirma. >