Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Thais Borges
Publicado em 20 de novembro de 2025 às 05:00
No final do semestre passado, uma estudante do curso de Medicina procurou a professora e médica otorrinolaringologista Lorena Pinheiro. Desanimada, a estudante queria trancar o curso. "Até que ela me conheceu, viu minha forma de conduzir as aulas e os pacientes, e disse que viu uma forma de fazer diferente. Fiquei muito emocionada", lembra a médica. >
O último dia 6 marcou um ano da data da posse de Lorena como professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba), depois de enfrentar um longo processo que tentou impedir que ela assumisse a vaga para qual foi aprovada em um concurso de docentes. O caso de Lorena se tornou um dos marcos entre ações movidas por candidatos que usaram a Justiça contra a aplicação de cotas para professores em universidades federais em todo o país. A partir da história dela, outras situações surgiram. >
Lorena Pinheiro foi a primeira médica aprovada por cotas para ser professora da Faculdade de Medicina da Ufba
"Quando eu decidi expor o caso, lá atrás, eu sabia que não estava lutando só por mim. Sabia que o propósito da causa era maior. Pensei em fazer uma defesa da política de cotas de forma mais ampla e estrutural. Percebo que a partir da visibilidade na imprensa e nas redes sociais, a gente conseguiu pautar isso nos debates", diz ela, que se tornou a primeira professora cotista negra. >
Em agosto do ano passado, a médica descobriu que havia perdido a vaga para a qual foi aprovada na seleção pública após uma decisão da 1ª Vara Federal. Cotista, Lorena ficou em primeiro lugar após a última fase - a de heteroidentificação -, mas teve o resultado questionado pela candidata aprovada na ampla concorrência, em uma ação contra ações afirmativas. >
Depois de compartilhar o caso em uma rede social, entidades do movimento negro, médicos e professores de todo o país manifestaram apoio a ela. Começava ali, uma luta que durou 77 dias. Em outubro do ano passado, ela foi nomeada após uma determinação da 1ª Vara Federal. Em 6 de novembro, houve a posse. >
“Muitos alunos já me conheciam. Falavam: ‘professora, a gente estava esperando muito pela sua chegada”. Desde então, ela também tem se dedicado à pesquisa pós-covid, a um projeto de extensão numa comunidade no Pelourinho e tem se aproximado com os estudos sobre os problemas de boca. >
Hoje, Lorena dá aulas para alunos de três diferentes turmas: 80 estudantes do sétimo semestre de Medicina, 10 que se revezam no ambulatório como parte do internato (entre o 11º e 12º semestres) e outros 50 alunos do quarto semestre de Fonoaudiologia. >
"Acessar a Faculdade de Medicina como professora tem sido uma grande realização. Eu imaginava que teria muito trabalho, alguns desafios, mas encontrei um cenário muito acolhedor e receptivo", reflete ela, após um ano atuando como docente na instituição. >
Mudanças >
Formada em Medicina pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Lorena fez residência em otorrinolaringologia na Santa Casa da Bahia. Lá, aprendeu a conduzir casos clínicos, fazer operações acadêmicas e a operar. Em seguida, veio a especialização em doenças de boca na Universidade de São Paulo (USP).>
Na Ufba, Lorena se tornou mestra e doutora em Ciências da Saúde. A pesquisa de doutorado foi sobre perda de olfato após a covid-19. “Me vejo ocupando um lugar de referência para os alunos negros e negras que veem sua história em minha hsitória e podem projetar suas carreiras, podem saber que podem ser médicos e ter a especialidade que quiserem, podm galgar uma carreira acadêmica e serem docentes na universidade. Me vejo nesse papel de representatividade. Tem sido um ano muito especial”. >
No mês passado, Lorena foi eleita representante dos docentes junto ao Conselho Universitário (Consuni), que é a instância máxima da Ufba e é presidido pelo reitor. Ela recebeu 408 votos, um número considerado recorde para a categoria. >
Um dos temas que tem sido discutido é justamente a sobrelotação de vagas no curso de Medicina da Ufba. O acesso através do Bacharelado Interdisciplinar (BI) tem sido alvo de judicialização também pelas cotas, como o CORREIO mostrou no ano passado. >
"De uns três, quatro anos para cá, o curso ficou sobrecarregado de alunos e isso tem impactado nas práticas. Eles não conseguem matrículas em todos os componentes, atrasam a formatura e a entrada no mercado de trabalho. Ontem mesmo (quarta-feira), a gente discutiu uma forma de frear a judicialização", adianta Lorena. >
Todos esses processos são também ações contra as políticas afirmativas - neste caso, no segundo ciclo de cursos de graduação. Após a formatura no BI, os estudantes fazem uma nova seleção para entrar em um curso de progressão linear - nesse caso, o de Medicina - e a política de cotas. No entanto, candidatos da ampla concorrência entram na Justiça alegando uma suposta 'dupla cota' e têm conseguido sentenças que obrigam a Ufba a criar mais vagas do que o que está inicialmente previsto. >
Ainda assim, ela avalia que houve avanços ao longo deste período. Em agosto, aconteceu o Seminário sobre Cotas nas Universidades, promovido pela Justiça Federal e pela universidade. Iniciativas assim, para Lorena, têm rendido frutos. >
"Já vejo resultados a partir disso. Já temos decisões de primeira instância para manter a política de cotas. Isso aconteceu recentemente em um concurso de Odontologia, para a vaga de Dentística. A candidata da ampla deu entrada com mandado de segurança e perdeu ainda na primeira instância", diz >
Para Lorena, a participação em espaços de decisão da universidade são importantes para defender as políticas afirmativas não apenas para os docentes, mas para toda a comunidade acadêmica. Como seu regime de contratação não é o de dedicação exclusiva, ela ainda continua operando e atendendo tanto no Sistema Único de Saúde (SUS) quanto na rede privada. >
"Tenho ainda 35 anos de docência pela frente, com muito gás para trabalhar, desenvolver projetos de pesquisa e extensão. Quero continuar com o projeto de otorrinolaringologia, que tem encantado os alunos", diz ela, hoje com 40 anos. >