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Carol Neves
Arthur Max
Publicado em 28 de novembro de 2025 às 06:01
Em agosto de 1998, nada parecia excepcional na rotina do aposentado da Petrobras Raimundo Nonato de Alcântara, 73 anos. O sítio simples onde vivia com a esposa, Luzimar Regina Vieira de Alcântara, então com 29 anos, em Areia Branca, no município de Lauro de Freitas, era o cenário cotidiano - afastado do centro urbano, silencioso, sem energia elétrica e praticamente isolado. Uma mudança drástica para alguém que havia passado a vida entre Salvador, o trabalho e a família. >
Naquele domingo, o último de agosto, a casa estava mais movimentada do que o normal. Luzimar organizara um churrasco para receber as filhas de Raimundo. A justificativa: o marido viajaria para Brasília na semana seguinte. Depois de meses de convivência fria entre madrasta e enteadas, talvez aquela fosse a oportunidade de curtir um momento de paz na família.>
Para as filhas, algo havia mudado no pai desde a chegada da nova esposa. Antes ativo e vaidoso, tornou-se apático. Parou de visitar familiares, passou a gastar dinheiro sem explicação e chegou a transferir bens para o nome de Luzimar. A mudança para o sítio isolado acendeu alertas - especialmente quando Jucilene viu, pela primeira vez, o local. “O lugar tinha um aspecto horrível, era a cena perfeita para um crime", relembraria a filha depois que tudo veio à tona. Ainda assim, por medo de provocar nele uma crise hipertensiva, as filhas evitavam confrontá-lo.>
Crime de 'Viúva Negra' aconteceu em 1998
No dia do churrasco, a anfitriã circulava entre os convidados, sorridente, atenciosa - um comportamento que, mais tarde, seria relembrado com inquietação pelas filhas. Elas não aprovavam a relação. Achavam Luzimar “interesseira” e “vulgar”, segundo reportagens do CORREIO da época. Mas naquele domingo não houve discussões. Parecia, enfim, um almoço de despedida tranquilo.>
A despedida de quem, acreditava-se, viajaria no dia seguinte. A verdade, porém, é que Raimundo não chegou a sair de casa e seu corpo seria encontrado>
Traição descoberta>
No dia seguinte ao churrasco, as filhas receberam a revelação que reacendeu velhas suspeitas: Luzimar mantinha um romance com o sobrinho e filho de criação de Raimundo, o eletricista Evandro Crispiniano dos Santos, 59 anos.>
A notícia não caiu como surpresa completa, mas como confirmação de um pressentimento. E naquele momento, algo na história da viagem começou a soar ainda mais estranho.>
Primeiro, uma acareação informal. Reunidos pela própria família, Luzimar e Evandro se contradisseram. Gaguejaram, desconversaram, acusaram-se sutilmente, deixando no ar o cheiro de um enredo mais profundo. Os pertences de Raimundo estavam todos em casa, sem sinal de quem fez uma mala para viajar. >
A polícia seria acionada, mas antes disso o caso entraria em sua primeira espiral trágica.>
Suicídio muda rumo>
Em meados de setembro, quando o cerco familiar se fechava e os laços entre madrasta e sobrinho já estavam expostos, Evandro tomou a decisão radical que marcaria definitivamente o caso. Tomado por remorso e pressão, ingeriu veneno - soda cáustica e raticida.>
Morreu dois dias depois, no Hospital Roberto Santos. Antes disso, porém, segundo depoimento registrado, fez uma confissão amarga a um enfermeiro: “Essa mulher arruinou a minha vida e da minha família.”>
Enquanto Evandro agonizava, Luzimar fugiu, temendo ser presa. As suspeitas aumentaram ainda mais sinalizando que algo estava errado.>
Mas o que ainda faltava era a materialização do que todos temiam: o paradeiro de Raimundo.>
A descoberta do corpo>
Foi no início de dezembro de 1998 que a investigação chegou ao ponto decisivo. O sítio de Areia Branca foi novamente vistoriado. E ali, no quarto principal do casal, um detalhe gritava: o piso, que até agosto era de terra batida, estava cimentado.>
Foram chamados dois pedreiros. Eles cavaram mais de um metro sob o cimento espesso, misturado ao arenito. A cada pá, o cheiro da decomposição se intensificava. Era impossível não sentir que, a qualquer momento, o caso mudaria de patamar.>
E então surgiu o corpo. Encolhido, já bastante deteriorado. A filha, Jucinalva Alcântara, fez o reconhecimento. A “viagem a Brasília” jamais existira e Raimundo não chegou a sair de casa. >
O teatro das ligações telefônicas>
Durante semanas, Luzimar sustentou a mentira com empenho calculado. Simulava telefonemas diante de testemunhas, fingia falar com o marido e dizia às filhas: "Ele está bem, ele liga todo dia".
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Quando uma das filhas recebeu o recado de que Raimundo “havia telefonado”, descobriu-se que a ligação vinha de um número com prefixo de Aracaju. Quando retornaram, ninguém sabia quem era Raimundo Nonato. O sigilo telefônico revelaria depois algo crucial: todas as ligações ditas do aposentado partiram do celular de Evandro.>
Um teatro elaborado para sustentar a farsa do desaparecimento “sem suspeitas”.>
Prisão de Luzimar>
Luzimar Regina foi presa no início de dezembro de 1998, poucos dias após a polícia localizar o corpo de Raimundo. Depois do suicídio de Evandro, seu amante e sobrinho da vítima, ela havia fugido temendo ser detida, mas acabou localizada e levada à delegacia para prestar depoimento. >
Ao ser presa, apresentou a versão de que o marido teria sido assassinado por Evandro e pelo pedreiro Edvaldo Araújo de Souza, 65 anos, afirmando que ambos cobiçavam os bens do aposentado e planejavam matá-la em seguida. Sem apresentar provas que sustentassem sua narrativa, Luzimar foi indiciada pela polícia e permaneceu recolhida aguardando julgamento, que na época chegou a ser adiado em razão da greve dos serventuários da Justiça.>
O pedreiro sob suspeita e o laudo que complicou tudo>
Na versão da viúva, o pedreiro Edvaldo teria sido contratado por Evandro para aplicar “golpes de machado” no aposentado. Mas o laudo de necropsia desmontou essa parte: não havia no corpo lesões compatíveis com machadadas. A juíza Leonildes Silva pediu esclarecimentos adicionais aos peritos Wellington Abdala Azzi e Lino Manoel da Costa Neto. Para os especialistas, a morte aconteceu por sufocamento. Eles ressaltaram que o estado de putrefação impedia identificar sinais típicos, como redução do diâmetro do pescoço.>
Sobre veneno, foram evasivos. Quanto ao machado, foram categóricos: “Um machado (...) produz lesões geralmente acompanhadas de fraturas e estas não foram detectadas no corpo.” Apesar das lacunas e dúvidas sobre sua participação, Edvaldo permaneceu preso até o julgamento.>
Luzimar, a “Viúva Negra”>
Quem acompanhava o caso ainda no fim dos anos 90 lembra bem do momento em que a polícia passou a usar uma expressão que pegaria: “Viúva Negra” - uma alusão à aranha que devora o macho após a cópula. Luzimar, de fato, parecia acumular relacionamentos cercados por tragédias: dois ex-maridos teriam morrido em circunstâncias misteriosas.>
Mãe de dois filhos, ex-vendedora de acarajé, sem bens e enfrentando dificuldades financeiras, Luzimar via em Raimundo uma solução. Ele tinha aposentadoria alta, cerca de R$ 5 mil, e patrimônio acumulado ao longo da vida. Mas a relação, segundo a família, nunca pareceu movida por paixão.>
A viúva do amante: mágoa, pobreza e o colapso de uma família>
Enquanto o caso ganhava manchetes, outra vítima colateral surgia: Neuza Estelita de Souza, viúva de Evandro, mergulhou numa combinação de revolta e ruína. Ela, que vivia em relativa estabilidade, passou à quase indigência, dividindo pensão de R$ 240 com duas outras mulheres com quem o marido mantinha relações.>
Ainda assim, defendia que ele não mataria o tio. “Ele era incapaz de matar uma mosca, uma barata... como ia ter coragem de tirar a vida de uma pessoa?”, questionava. Para ela, o plano foi arquitetado por Luzimar, que chamou de "uma mulher fria e cínica".>
O júri que selou o destino da Viúva Negra>
O julgamento de Luzimar aconteceu em um dia inteiro que deixou o Fórum de Lauro de Freitas lotado. Era 2000, e o caso já mobilizava a opinião pública há mais de dois anos.>
O júri começou às 8h e só terminou depois das 17h. A juíza Leonildes Bispo dos Santos leu a decisão: por quatro votos a três, Luzimar foi condenada a 17 anos de prisão, em regime fechado. Ela já cumpriu a pena. >
No mês seguinte, o pedreiro Edvaldo Araújo de Souza foi a julgamento também em Lauro de Freitas, e foi absolvido por cinco dos sete jurados. >
O julgamento durou aproximadamente 12 horas e a defesa do pedreiro negou autoria todo tempo. O Ministério Público não conseguiu convencer o júri da culpa de Edvaldo, por conta da inconsistências das provas. Com isso, Edvaldo ficou livre. >